Casulo

em sábado, 9 de maio de 2020


Era uma quinta-feira. Como de costume, acordou, fez o sinal da cruz, sobre si e sobre a barriga, lavou o rosto e foi preparar o café. Lembrou-se de repente que, enfim, naquele dia chegariam os móveis, e sentiu a ansiedade percorrer seu corpo recém-acordado. Depois da xícara de café – em quantidade moderada, conforme orientações do médico – continuou seu ritual matutino. Tomou banho, foi para o quarto pentear os cabelos molhados e observou o corpo nu.

Todos os dias passava alguns minutos na frente do espelho analisando a sua forma, entendendo os seus novos traços e marcas. Tinha sido inclusive uma sugestão da psicóloga a de tempos em tempos buscar maneiras de assimilar seu novo formato, o espaço que ocupava, entender a projeção do espelho como o alguém que ela se tornara... Olhava com carinho uma barriga que gradualmente se acentuou, já ultrapassando os seios.

A gravidez lhe trouxera privações. Não podia mais jogar futebol, correr, ou praticar qualquer esporte que exigisse impacto. No início então... nem podia carregar qualquer peso além do próprio corpo. Teve medo de que o processo fosse sofrido, de que desacelerar fosse lhe roubar sua identidade; medo das possíveis futuras crises de identidade, de ansiedade, ou de tédio. Teve medo de se incomodar com a flacidez de um corpo indisposto e de passar meses (ou uma vida inteira) sendo não-atraente. Surpreendera-se, entretanto, por essas fases terem durado apenas o suficiente para lhe modificarem o olhar.

Não demorou muito e já interfonavam da portaria. “Ah, sim, pode liberar!” – respondeu ela, pouco antes de correr para o quarto e encontrar alguma roupa que pudesse usar em público e que ainda lhe coubesse. Recebeu com simpatia os entregadores, preocupando-se em não demonstrar grandes emoções, mas não se contendo em logo perguntar: “Será que o montador vem hoje também?”. Animou-se ao descobrir que era justamente com ele que ela falava. Enquanto os rapazes se dedicavam aos desembrulhos no quarto, a moça se ocupava na sala com seus e-mails e pesquisas, sem se privar de suas pequenas espiadas de canto de olho no cômodo ao lado. Não pareciam bem aqueles móveis, a cor lhes denunciava, então ela pensou numa maneira de dizer. “Oi, licença, esses móveis são cinza?”- foi o melhor que conseguiu. Era óbvio que não eram, mas não quis parecer arrogante. Os rapazes agradeceram o aviso com sorrisos amarelos, culparam o mais novo pelo equívoco e rapidamente desfizeram a troca.

Já mais segura após reconhecer o mobiliário que havia sido escolhido, a moça deixou-se distrair pelos afazeres diários. Logo já estava tudo pronto. Fechou a porta, agradecendo o serviço, e foi imediatamente para o quarto. Pegou a roupa de cama e as almofadas, arrumou tudo e lá estavam: o berço e cômoda de sua bebezinha. Não conseguia explicar o quanto a presença daqueles móveis mudava tudo. Tirou fotos, que enviou imediatamente para o esposo e para a família, sentou-se no sofá e, de súbito, as lágrimas lhe escorreram em cascata e soluços. Um choro que mal podia entender. A verdade é que por mais que a gravidez tivesse sido uma escolha, e que já há meses estivesse observando todos os sinais de um corpo gerando, era completamente diferente a percepção de ter um bebê no ventre, da sensação de imaginá-lo nos braços.

As frases que ouviu durante o processo ecoavam em sua mente como que em looping: “Assim que puder, coloque ela no berço, não vá deixar a criança mal acostumada”; “Dê sim toda a atenção que ela pedir, porque o tempo passa e daqui a pouco ela não vai mais querer o colo”; “Leia bastante, hoje em dia tem muita informação”; “Tudo isso é uma grande besteira, a maternidade é intuitiva”; “Pode deixar que vou te ajudar a deixar ela bem arrumadinha, porque a gente sabe que você não é dessas coisas”; “Iii, pode esquecer essa história de corrida por muito tempo...”; “Ah, você tá exagerando... Barriga não atrapalha ninguém a fazer nada...”.

Frases ditas por pessoas que lhe tinham amor, repletas de boa intenção. Algumas lhe doíam, outras lhe animavam, outras lhe faziam pensar decisões, mas todas, de certa forma, lhe atingiam. Talvez aquele choro fosse a grande percepção de que a maioria das frases diziam muito mais sobre ela do que sobre a maternidade em geral. Sobre quem ela tinha sido até ali e sobre o quanto do que ela realmente era, ela tinha mostrado às pessoas. Todas aquelas lágrimas eram mais do que um frenesi de hormônios, eram mais do que o medo do desconhecido. Aquelas lágrimas eram libertação de todas as expectativas que ela carregou, de todos os rótulos que ela aceitou e decidiu reforçar, de toda a falta de autocuidado.

Agora, nesse momento, ela era uma mulher em espera por conhecer o rosto do grande amor da sua vida, alguém por quem ela buscaria ser o melhor que pudesse, alguém por quem ela estava disposta a mudar e a romper com os próprios preconceitos. Agora ela não sabia mais se era agitada ou não, se era uma mulher dos números ou das letras, se queria trabalhar ou se dedicar às coisas da casa, se era prática ou sensível... Ela não sabia e nem precisava saber, porque o que realmente importava era viver o processo.

Carregava no ventre uma menina e queria ser boa para ela. Queria lhe ensinar que ela podia viver uma vida leve, independente do que quisessem lhe impor. Queria lhe amamentar de madrugada e ter olheiras por ela. Queria jogar bola com ela ainda bem pequena e vê-la tropeçar atrapalhada tentando um chute a gol. Queria levá-la ao salão para fazer as unhas quando fosse adolescente e deixar ela escolher o esmalte. Queria que no final de sua vida, a menina olhasse para a mãe como alguém que a amou e respeitou do seu jeito, mesmo que talvez ela tivesse escolhido marcas de fralda ruins, ou tivesse errado ao lhe colocar de castigo. Porque ela teria aprendido que o mais importante estava no querer bem, no amar e no tentar ser melhor todo dia.

Aquela mulher carregava uma menina. Era um casulo. E, ao mesmo tempo, metamorfose.

6 comentários:

  1. Caiu uma lágrima aqui! Acho que por mais que digam às mulheres como é ser mãe, não é possível saber com clareza até se tornar uma. Leva-se na bagagem tudo que se ouviu, mas estar aberta para o processo que faz diferença! Lindo texto! Amei!

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  2. Oowwn, que lindo ver essa metamorfose e de fato, não se preocupe muito, só viva um dia de cada vez, aproveitando todo o crescimento do casulo. Vc já é uma super mamãe! Feliz dia, prima!

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  3. Ah, amiga! Não dá pra não chorar com esse texto.. ser o casulo deve ser a experiência mais transformadora na vida de qualquer mulher. E sabe o que acontece com todas as frases que você ouviu? por melhor intencionadas que sejam, a verdade é uma só: cada bebê é único e cada mamãe também. Cada experiência é única. E cabe a vocês verem por onde irão trilhar quando a bebê estiver fora do casulo que lhe abriga no momento. Se vai dormir no berço, ou na cama, quem dirá é o futuro. Você se fez uma mulher forte. Eu me fiz uma mulher forte. Quem será que dormiu no berço? Quem fez cama compartilhada? isso não define absolutamente nada. São escolhas - diárias e únicas de cada família. Feliz dia das mães, minha linda!

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  4. Viver tantas mudanças e tantas emoções e ainda saber expressar tudo dessa forma, nos fazendo chorar e sentir um pouco disso tudo também, que orgulho dessa mulher, que é a mesma, mas já é uma nova mulher! Que ansiedade para ver essa menina!

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  5. Me encontrei em tantos momentos desse texto que segurar o choro foi impossível!!
    Costumo dizer que quando nasce um filho, nasce uma mãe.
    Mesmo com todos os " conselhos" que ganhamos, irá descobri o seu jeito se ser mãe. As vezes queremos ser como nossas mães, afinal elas são os nossos exemplos, mas a Clara não será você e assim errando e acertando, você irá descobri como ser mãe!!
    Viva o seu casulo, leia se isso faz vc se sentir preparada, imagine o futuro com ela, se isso te traz segurança.
    Em poucos meses irá descobri um amor tão lindo e puro q existe.
    Parabéns pelo texto!!
    Feliz primeiro dia das mães ♥️

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