A placa na porta dizia: "Em atendimento", então me sentei na cadeira acolchoada da sala de espera. Ainda bem que não tinha ninguém ali para constatar a inquietação de minhas pernas. Olhei o relógio, faltavam poucos minutos para ouvir alguém chamar meu nome. Alguém cujo rosto eu não conhecia, mas que - eu imaginava - ia querer saber tudo de mim. Eu tentava ensaiar respostas para uma avalanche de possíveis perguntas, quando fui interrompida por uma voz feminina grave e levemente rouca:
- Você é a Beatriz? Vamos entrar!?
No fundo,
reparei uma rosa sobre a bancada, e, mais acima, uma palavra desenhada na
parede: “Respire!”. Olhei para aquilo que poderia ser uma ordem, ou um pedido,
mas que, particularmente em mim, soou como um convite. Inspirei com atenção, percebendo
o oxigênio inflar meus pulmões, enchendo-me de vida. Enfim, levantei os olhos.
A mulher à minha frente fitava-me com uma expressão atenciosa. Em silêncio, ela
parecia esperar que eu pudesse me recompor. De alguma forma, ela demonstrava
notar que eu passava por muita coisa.
- Oi, Beatriz – disse ela, enfim.
- Meu nome é Susana. Você quer me contar o que te trouxe aqui? Fica à vontade
para dizer o que quiser...
Eu não estava preparada para uma
pergunta tão vaga. Tinha respostas planejadas para questionamentos sobre a
minha família, meu trabalho, minha infância, sobre os meus hobbies e medos, mas
eu não tinha resposta pronta para aquela pergunta. Então fui simplesmente
sincera:
- Uma das minhas melhores amigas,
a Lara, faz terapia já há uns dois anos e ela disse que me faria bem.
Foi assim que eu comecei um
processo sério, doloroso, sufocante e extremamente necessário de terapia. Saí
daquela sessão com o rosto vermelho e inchado, sem entender como, com tamanha
facilidade, consegui falar tanto sobre o meu relacionamento com o Bruno. Talvez
aquela figura feminina, justamente por ser feminina, tenha me deixado
confortável. Ou talvez tenha sido o fato de ela não ser alguém da família, ou
minha amiga, o que me permitia esvaziar sem medo de julgamentos e sem
necessidade de manter qualquer imagem de algo que eu já tivesse sido. Na
verdade, nem eu sabia mais quem eu era. Me via como uma figura disforme,
embaçada e fluida, que poderia ser facilmente transformada em qualquer coisa ou
em nada.
Cada sessão parecia cutucar uma ferida que eu imaginava fechada, como se em cada uma delas, eu arrancasse uma casca mal curada, mal fechada, infeccionada. E como doía! Apesar de todo o trabalho que vinha sendo feito, já fazia dois anos que eu não tinha qualquer relacionamento. Nesse processo de autocuidado, eu não tinha conseguido ainda abrir espaço para outro homem. Eu tinha medo de que alguém pudesse destruir o que eu vinha, com tanto esforço, reconstruindo. Tinha medo de ser novamente frágil. Foi isso o que o Bruno fez comigo.
Em meio a essa busca, eu encontrei algo que eu nem sabia que
me faltava: espiritualidade. Não é que eu não acreditasse em Deus, ou nunca
tivesse rezado, mas nos últimos anos, a minha relação com Ele era basicamente
feita de pedidos e choros. Eu dificilmente conseguia estabelecer diálogo e intimidade.
Foi na procura por autoconhecimento que entendi minha necessidade de encontrar
sentido de viver, algo que fosse além das minhas ambições profissionais ou
prazeres passageiros. Encontrei nos relatos das vidas de cristãos – dessa e de
outras gerações – algo que me perturbava e encantava. Por que alguém se
dedicava a um Deus invisível, com convicção de sua existência, vivia por Ele e,
se preciso, morria por Ele? Fui me envolvendo nessa experiência. Me deixei
moldar e fui sendo curada por Deus. E foi só por isso que o Leandro me chamou a
atenção.
Uma vez, eu saí com os amigos da Lara e reparei que o
Leandro carregava um crucifixo no pescoço. Conseguia ouvir partes da conversa
que ele tinha com outro amigo nosso. Leandro falava sobre o intercâmbio, do
qual tinha acabado de retornar, e seus olhos brilhavam enquanto ele contava
sobre os lugares que havia visitado e as praias em que tinha surfado. Como o
papo dele era interessante! Vi naquele cara algo que eu não via em outros
homens. Parecia muito seguro e ao mesmo tempo muito disposto a ouvir. Quando
acabei entrando na conversa, mesmo que meus conhecimentos geográficos fossem
tão limitados, ele escutava com muita generosidade as bobagens que eu tinha a
dizer. Eu queria conversar com ele por horas e horas, queria que ele fosse meu
amigo.
Começamos a ter mais convívio e pudemos falar sobre fé,
caridade, gentileza... um estilo de vida diferente e aquilo me transformou. A
ponto de um dia, em uma caminhada noturna pela praia, eu me sentir segura o
suficiente para falar com ele, um homem, sobre o último relacionamento que eu
tive e sobre o fato de que há dois anos eu sequer beijara na boca. De todas as
posturas que eu já tinha visto em um homem, aquela eu não esperava nem mesmo
dele. Lançou sobre mim um olhar preocupado, perguntou se eu me sentiria incomodada
se ele me abraçasse e, ao ouvir minha resposta, embalou-me com firmeza por
tanto tempo e com tanto aconchego que eu nem sei por quantos minutos ficamos
ali. Minhas lágrimas escorriam pelos seus ombros, selando o que seria o meu
último choro pelo Bruno.
Não foi rápido que nós declaramos o que estávamos sentindo.
Não foi uma paixão arrebatadora. Não foi o meu primeiro amor. Mas foi uma
relação construída de muito afeto, intimidade, generosidade, admiração e
respeito. Em seis meses, já nos sentíamos completamente à vontade para sermos
nós mesmos, o que, no meu caso, era uma grande descoberta. Vivíamos colados,
íamos para a igreja juntos, íamos para o bar juntos. Dançávamos juntos,
chorávamos juntos. E ele não precisava dizer nenhuma palavra para que eu entendesse
que ele me esperava. Esperava o meu processo de cura, de purgar, drenar aquele
veneno que por tanto tempo me percorrera. E quando eu me vi limpa, pronta,
autoconfiante e disposta a me entregar de novo a uma outra pessoa, eu sabia que
era para ele que eu me entregaria.
Foi numa quinta-feira cinzenta que eu chamei o Leandro para
assistir um filme na minha casa. Ele chegou super acelerado, contando sobre um estresse
do trabalho, o que fez com que ele demorasse um pouco a perceber a música no
fundo e o ambiente um pouco mais convidativo que o normal. Só quando ele se
sentou ao meu lado no sofá e sentiu o cheiro do meu perfume, ele levantou os
olhos e pareceu, enfim, enxergar.
Afastei uma mexa rebelde de seu cabelo que caía sobre uma
das sobrancelhas. Deixei que meus dedos deslizassem suavemente pelo seu rosto.
Me aproximei até que nossas pernas se entrelaçassem e então eu senti cada
palavra saindo aos pouquinhos, voando de dentro de mim:
- Você me ajudou a colar cada pedacinho meu e agora eu não
quero viver uma vida em que eu não seja a sua mulher, a sua companheira. E eu
quero que você sinta cada dia da sua vida o quanto eu te amo e que você nunca
se arrependa de ter me esperado. Eu vejo e eu vi tudo o que você fez por mim e
por nós e estou aberta a me deixar transbordar junto com você nessa vida.
Demos o beijo mais esperado da minha vida e o melhor de
todos, que me arrepiou do dedinho do pé ao coro cabeludo. Adrenalina, paixão,
tesão, amor, alívio... não sei nomear. Todo o meu corpo estava em êxtase. Mais
ainda a minha alma.
A partir daquele momento, desfrutamos de uma vida de muitos
aprendizados e respeito e eu me sentia valorizada. Ele nunca precisou me
diminuir para crescer. Pelo contrário, sempre aplaudia os meus avanços, o
crescimento da minha loja, as escolhas profissionais e intelectuais que eu
fazia. Conhecemos mais de vinte países juntos, compramos uma casa, casamo-nos,
passamos pelas dificuldades de um casal recente... E tudo era de um
companheirismo indescritível, desde limpar o banheiro juntos até decidir pegar
um avião de uma hora para a outra.
Por isso, quando ele demorou a chegar em casa depois de uma
manhã de surf, eu gelei. Algo me dizia que uma dor muito grande iria me
acometer. Não era normal toda aquela demora sem aviso. Recebi então a pior ligação da minha vida. O
meu grande amor, meu melhor amigo, parceiro de vida...
Hoje é possível falar disso, não sem dor, não sem saudade,
mas é possível. Aqui do alto dessa montanha, eu me preparo para lançar ao mar
as cinzas do meu grande amor. Foi nesse mar que ele tantas vezes se encontrou,
foi nele que ele morreu e é com esse gesto que eu quero decretar: eu sou o seu
legado! Uma mulher antes destruída por um homem, hoje refeita com a ajuda de
um.
Existem muitas maneiras de ser homem, muitas maneiras de ser
mulher e muitas maneiras de ser humano, mas todas aquelas que nos violam ou
violam o outro não merecem a nossa insistência e existência. Também o amor tem
muitas formas e objetos – outra coisa que Leandro me ensinou. Amo o outro, amo a
mim e amo a Deus, e se esses amores violam um ao outro, então estamos amando
errado.