Aqui embaixo - Capítulo 3 - O verdadeiro amor

em sábado, 27 de março de 2021

A placa na porta dizia: "Em atendimento", então me sentei na cadeira acolchoada da sala de espera. Ainda bem que não tinha ninguém ali para constatar a inquietação de minhas pernas. Olhei o relógio, faltavam poucos minutos para ouvir alguém chamar meu nome. Alguém cujo rosto eu não conhecia, mas que - eu imaginava - ia querer saber tudo de mim. Eu tentava ensaiar respostas para uma avalanche de possíveis perguntas, quando fui interrompida por uma voz feminina grave e levemente rouca:


- Você é a Beatriz? Vamos entrar!?


No fundo, reparei uma rosa sobre a bancada, e, mais acima, uma palavra desenhada na parede: “Respire!”. Olhei para aquilo que poderia ser uma ordem, ou um pedido, mas que, particularmente em mim, soou como um convite. Inspirei com atenção, percebendo o oxigênio inflar meus pulmões, enchendo-me de vida. Enfim, levantei os olhos. A mulher à minha frente fitava-me com uma expressão atenciosa. Em silêncio, ela parecia esperar que eu pudesse me recompor. De alguma forma, ela demonstrava notar que eu passava por muita coisa.

 

- Oi, Beatriz – disse ela, enfim. - Meu nome é Susana. Você quer me contar o que te trouxe aqui? Fica à vontade para dizer o que quiser...

 

Eu não estava preparada para uma pergunta tão vaga. Tinha respostas planejadas para questionamentos sobre a minha família, meu trabalho, minha infância, sobre os meus hobbies e medos, mas eu não tinha resposta pronta para aquela pergunta. Então fui simplesmente sincera:

 

- Uma das minhas melhores amigas, a Lara, faz terapia já há uns dois anos e ela disse que me faria bem.

 

Foi assim que eu comecei um processo sério, doloroso, sufocante e extremamente necessário de terapia. Saí daquela sessão com o rosto vermelho e inchado, sem entender como, com tamanha facilidade, consegui falar tanto sobre o meu relacionamento com o Bruno. Talvez aquela figura feminina, justamente por ser feminina, tenha me deixado confortável. Ou talvez tenha sido o fato de ela não ser alguém da família, ou minha amiga, o que me permitia esvaziar sem medo de julgamentos e sem necessidade de manter qualquer imagem de algo que eu já tivesse sido. Na verdade, nem eu sabia mais quem eu era. Me via como uma figura disforme, embaçada e fluida, que poderia ser facilmente transformada em qualquer coisa ou em nada.

 

Cada sessão parecia cutucar uma ferida que eu imaginava fechada, como se em cada uma delas, eu arrancasse uma casca mal curada, mal fechada, infeccionada. E como doía! Apesar de todo o trabalho que vinha sendo feito, já fazia dois anos que eu não tinha qualquer relacionamento. Nesse processo de autocuidado, eu não tinha conseguido ainda abrir espaço para outro homem. Eu tinha medo de que alguém pudesse destruir o que eu vinha, com tanto esforço, reconstruindo. Tinha medo de ser novamente frágil. Foi isso o que o Bruno fez comigo.


Em meio a essa busca, eu encontrei algo que eu nem sabia que me faltava: espiritualidade. Não é que eu não acreditasse em Deus, ou nunca tivesse rezado, mas nos últimos anos, a minha relação com Ele era basicamente feita de pedidos e choros. Eu dificilmente conseguia estabelecer diálogo e intimidade. Foi na procura por autoconhecimento que entendi minha necessidade de encontrar sentido de viver, algo que fosse além das minhas ambições profissionais ou prazeres passageiros. Encontrei nos relatos das vidas de cristãos – dessa e de outras gerações – algo que me perturbava e encantava. Por que alguém se dedicava a um Deus invisível, com convicção de sua existência, vivia por Ele e, se preciso, morria por Ele? Fui me envolvendo nessa experiência. Me deixei moldar e fui sendo curada por Deus. E foi só por isso que o Leandro me chamou a atenção.


Uma vez, eu saí com os amigos da Lara e reparei que o Leandro carregava um crucifixo no pescoço. Conseguia ouvir partes da conversa que ele tinha com outro amigo nosso. Leandro falava sobre o intercâmbio, do qual tinha acabado de retornar, e seus olhos brilhavam enquanto ele contava sobre os lugares que havia visitado e as praias em que tinha surfado. Como o papo dele era interessante! Vi naquele cara algo que eu não via em outros homens. Parecia muito seguro e ao mesmo tempo muito disposto a ouvir. Quando acabei entrando na conversa, mesmo que meus conhecimentos geográficos fossem tão limitados, ele escutava com muita generosidade as bobagens que eu tinha a dizer. Eu queria conversar com ele por horas e horas, queria que ele fosse meu amigo.


Começamos a ter mais convívio e pudemos falar sobre fé, caridade, gentileza... um estilo de vida diferente e aquilo me transformou. A ponto de um dia, em uma caminhada noturna pela praia, eu me sentir segura o suficiente para falar com ele, um homem, sobre o último relacionamento que eu tive e sobre o fato de que há dois anos eu sequer beijara na boca. De todas as posturas que eu já tinha visto em um homem, aquela eu não esperava nem mesmo dele. Lançou sobre mim um olhar preocupado, perguntou se eu me sentiria incomodada se ele me abraçasse e, ao ouvir minha resposta, embalou-me com firmeza por tanto tempo e com tanto aconchego que eu nem sei por quantos minutos ficamos ali. Minhas lágrimas escorriam pelos seus ombros, selando o que seria o meu último choro pelo Bruno.


Não foi rápido que nós declaramos o que estávamos sentindo. Não foi uma paixão arrebatadora. Não foi o meu primeiro amor. Mas foi uma relação construída de muito afeto, intimidade, generosidade, admiração e respeito. Em seis meses, já nos sentíamos completamente à vontade para sermos nós mesmos, o que, no meu caso, era uma grande descoberta. Vivíamos colados, íamos para a igreja juntos, íamos para o bar juntos. Dançávamos juntos, chorávamos juntos. E ele não precisava dizer nenhuma palavra para que eu entendesse que ele me esperava. Esperava o meu processo de cura, de purgar, drenar aquele veneno que por tanto tempo me percorrera. E quando eu me vi limpa, pronta, autoconfiante e disposta a me entregar de novo a uma outra pessoa, eu sabia que era para ele que eu me entregaria.


Foi numa quinta-feira cinzenta que eu chamei o Leandro para assistir um filme na minha casa. Ele chegou super acelerado, contando sobre um estresse do trabalho, o que fez com que ele demorasse um pouco a perceber a música no fundo e o ambiente um pouco mais convidativo que o normal. Só quando ele se sentou ao meu lado no sofá e sentiu o cheiro do meu perfume, ele levantou os olhos e pareceu, enfim, enxergar. 


Afastei uma mexa rebelde de seu cabelo que caía sobre uma das sobrancelhas. Deixei que meus dedos deslizassem suavemente pelo seu rosto. Me aproximei até que nossas pernas se entrelaçassem e então eu senti cada palavra saindo aos pouquinhos, voando de dentro de mim:


- Você me ajudou a colar cada pedacinho meu e agora eu não quero viver uma vida em que eu não seja a sua mulher, a sua companheira. E eu quero que você sinta cada dia da sua vida o quanto eu te amo e que você nunca se arrependa de ter me esperado. Eu vejo e eu vi tudo o que você fez por mim e por nós e estou aberta a me deixar transbordar junto com você nessa vida.

 

Demos o beijo mais esperado da minha vida e o melhor de todos, que me arrepiou do dedinho do pé ao coro cabeludo. Adrenalina, paixão, tesão, amor, alívio... não sei nomear. Todo o meu corpo estava em êxtase. Mais ainda a minha alma.


A partir daquele momento, desfrutamos de uma vida de muitos aprendizados e respeito e eu me sentia valorizada. Ele nunca precisou me diminuir para crescer. Pelo contrário, sempre aplaudia os meus avanços, o crescimento da minha loja, as escolhas profissionais e intelectuais que eu fazia. Conhecemos mais de vinte países juntos, compramos uma casa, casamo-nos, passamos pelas dificuldades de um casal recente... E tudo era de um companheirismo indescritível, desde limpar o banheiro juntos até decidir pegar um avião de uma hora para a outra.


Por isso, quando ele demorou a chegar em casa depois de uma manhã de surf, eu gelei. Algo me dizia que uma dor muito grande iria me acometer. Não era normal toda aquela demora sem aviso.  Recebi então a pior ligação da minha vida. O meu grande amor, meu melhor amigo, parceiro de vida...


Hoje é possível falar disso, não sem dor, não sem saudade, mas é possível. Aqui do alto dessa montanha, eu me preparo para lançar ao mar as cinzas do meu grande amor. Foi nesse mar que ele tantas vezes se encontrou, foi nele que ele morreu e é com esse gesto que eu quero decretar: eu sou o seu legado! Uma mulher antes destruída por um homem, hoje refeita com a ajuda de um.


Existem muitas maneiras de ser homem, muitas maneiras de ser mulher e muitas maneiras de ser humano, mas todas aquelas que nos violam ou violam o outro não merecem a nossa insistência e existência. Também o amor tem muitas formas e objetos – outra coisa que Leandro me ensinou. Amo o outro, amo a mim e amo a Deus, e se esses amores violam um ao outro, então estamos amando errado.

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Aqui embaixo - Capítulo 2 - O Falso Amor

em quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Enquanto deslizava o batom sobre os lábios, me dava conta do quanto gostava do que eu via no espelho. Havia pouco tempo, tinha completado meus 23 anos e eu me sentia, enfim, uma mulher bonita. Não que eu me considerasse uma pessoa completamente insegura ou qualquer coisa assim, mas a adolescência pode ser bem cruel com algumas pessoas, não é? Todas aquelas espinhas e estrias em um corpo magro e comprido, que cresceu rápido demais. Ainda tem aquele andar desengonçado que dá a impressão que algo descompassou de repente. Eu era uma dessas adolescentes, mas, pelo menos, eu tinha um namorado. Porém, quando eu e Caio terminamos, eu precisei aprender a gostar de mim sem que alguém estivesse ao meu lado repetindo que eu era linda.


Passei alguns anos vivendo essa descoberta a respeito da mulher que eu era. Dediquei-me a viver coisas que eu gostava, amava ou achava que precisava. Consegui passar no vestibular para a faculdade de Letras, passei a dar aulas de português e redação em um pré-vestibular comunitário, tirei a carteira de motorista e abri uma loja de venda de roupas online junto com a Lara, minha amiga de anos.


Já tinha um tempo que eu vinha trabalhando no projeto pessoal de me tornar uma mulher da qual eu pudesse me orgulhar. Acho que eu já poderia dizer que eu me achava interessante, mas bonita mesmo, era uma coisa bem recente. Não era muito claro para mim o exato momento em que parei de achar a preocupação com a estética uma futilidade e comecei a gostar tanto disso que sugeri à Lara que a gente abrisse a loja. Fiz alguns cursos, procurei parceiros e, quando me dei conta, as coisas estavam avançando num ritmo razoável. Talvez toda aquela vivência com a moda tenha despertado uma vaidade em mim que, ao contrário do que eu imaginava, não me tornou superficial, mas me trouxe autoconfiança e tranquilidade para me expor como eu bem entendesse, me vestir como me sentisse à vontade, usar o cabelo que combinasse comigo. Por isso, quando eu encarava o reflexo naquele espelho, com o batom na mão, eu via uma mulher que não era só interessante e não era só bonita, era os dois.


Saí revestida de autoconfiança. Liguei para a Júlia no caminho, que me disse que os outros amigos da faculdade já tinham chegado, só faltava eu. A gente ia se encontrar em um barzinho na Lapa, onde acontecia uma roda de samba maravilhosa. Quando cheguei, meus amigos já tinham bebido bastante, o que fez a recepção ser bem calorosa. Túlio já chegou me puxando para sambar e eu, embebida da minha recém-conquistada autoconfiança, não deixei a desejar na performance. A noite fluiu com muita naturalidade e leveza. Eu me sentia bem, feliz, realizada. Tinha ótimos amigos, cursava algo que amava, estava ganhando o suficiente para me manter com alguns luxos, tinha uma família incrível, podia ajudar pessoas a conquistarem uma vaga na faculdade... Enfim, eu me sentia plena, feliz, interessante, bonita. Não sentia falta de um amor, não agora. Não que eu não quisesse, mas não era necessário para que eu me sentisse bem. Por isso, tantas vezes quando repasso essa história na minha cabeça eu me pergunto o porquê de eu me sentir tão envolvida com o cara que me abordou naquela noite. Tudo poderia ter sido diferente se eu simplesmente não estivesse ali no mesmo dia e hora que ele. Mas eu estava.


No meio de uma conversa animadíssima sobre algo que não me lembro, senti uma mão pairar sobre o meu ombro.


- “Oi, licença, boa noite, posso falar com você?”


Nem sei dizer exatamente sobre o que tanto falamos, mas passei o resto da noite, conversando, rindo e achando aquele homem tão interessante e cativante! Ele não era pedante como um monte de caras que costumavam puxar papo nas baladas, mas também não parecia inseguro. Ele realmente prestava atenção no que falava, era gentil e carinhoso. Eu acabei bebendo demais e ele me levou para casa, sem nem tentar nada. Só pegou o número do meu telefone e me disse para descansar. No dia seguinte eu acordei com uma ressaca braba, acompanhada de alguns lapsos de memória e muita dor de cabeça. Mas eu me lembrava daquele rosto charmoso, do sorriso cativante e da sensação de me sentir atraída, envolvida e encantada. Quando eu já estava me conformando de que aquela era só mais uma boa história para guardar e relembrar com uma nostalgia gostosa - já que provavelmente eu tinha assustado o garoto com o meu exagero alcoólico justo quando nos conhecemos - fui surpreendida por uma ligação.


- Alô! Oi, é o Bruno. Desculpa se eu te acordei, queria saber como você está.


E foi assim que tudo começou. Ele dizia tudo o que eu gostava de ouvir. Realmente eu estava nas nuvens, tão perdidamente apaixonada que eu não conseguia imaginar passar muito tempo sem pelo menos trocar mensagens com ele. Vivia para lá e para cá rindo para o celular, distraída, abobalhada. Vivia algo engraçado e ia logo contar para ele e me derretia quando ele dizia que tinha lembrado de mim ouvindo alguma música melosa. Passei semanas revezando entre estar com ele em algum lugar novo, e me surpreender recebendo presentes, flores, chocolates seja em casa, no trabalho, até na academia. Mas o que foi mais incrível ainda foi chegar em casa dois meses depois do dia que nos conhecemos e mal reconhecer o meu quarto, cheio de balões em formato de coração, rosas pelo chão e um escrito fluorescente na parede: “Namora comigo?”. Me ajoelhei junto ao Bruno, que segurava uma caixinha com duas alianças, achando maravilhosos aqueles anéis de compromisso tão clichês. Ali nos beijamos com muito afeto. Eu estava agradecida por viver um amor tão profundo, por me sentir tão especial, tão desejada, tão bem cuidada. Permaneci de olhos fechados por um tempo, mas não pude conter uma lágrima teimosa que descia livre e serelepe, celebrando essa alegria que de mim extravasava. Nos braços dele eu me sentia completa, segura, protegida.


Passamos dias maravilhosos, viajando, curtindo, comendo em restaurantes incríveis. Ele me mimava e eu não me incomodava de estar em qualquer lugar que fosse, contanto que ele estivesse junto. Por isso, não estranhei quando ele disse que não queria que eu fosse no aniversário do Túlio. Entendi que estava cansado e que só queria ficar ali aconchegado comigo. Em pouco tempo estávamos morando juntos, apesar de meus pais acharem rápido demais. O Bruno conversou comigo e me explicou que a nossa criação tinha sido muito diferente e que eu era super protegida. Ele me aconselhou a enfrentar meus pais de vez em quando, afinal eu já era adulta e não é como se eu estivesse fugindo de casa... eu estava indo morar com o homem da minha vida. Era só uma questão de tempo mesmo, então por que adiar as coisas?


Foi uma delícia escolher os móveis, pintar a casa juntos, dormir e acordar ao lado dele. A gente gostava tanto de ter o outro por perto que o Bruno até me pediu para parar de dar as aulas no pré-vestibular comunitário.  Eu não queria deixar de ajudar aqueles meninos e gostava muito de lecionar, mas ele pareceu bem magoado quando eu comecei a falar sobre isso, então não quis ser egoísta. Eu entendia que se a gente foi morar junto para estar mais tempo um com o outro, eu precisava efetivamente estar ali, disponível.


Eu não tinha certeza se era maluquice da minha cabeça e não queria parecer paranóica, mas comecei a notar que o Bruno estava chegando cada vez mais tarde do trabalho e, quando estava em casa, passava muito tempo mexendo no celular. Uma vez eu perguntei se estava acontecendo alguma coisa e ele disse que só estava com muito trabalho e que era para eu não surtar. Mas em um fim de noite, acabei vendo uma mensagem piscando no celular dele com uma mensagem muito sugestiva.


- Quem é Suellen?


- Suellen? É uma amiga do trabalho? Por quê? – com o maior ar de casualidade possível.


- Eu estava sentada ao lado do seu celular e, por acaso, o celular acendeu e eu vi uma mensagem dela... Você quer me contar alguma coisa?


- Eu? Contar o quê? Tá maluca?


- “Chegou bem, gato?”... Parece que você tem algo para me contar!


Aquela discussão demorou horas e não sei exatamente como eu terminei pedindo desculpas pela minha insegurança e por desconfiar dele. Tentei não dar atenção para a força com que ele segurou o meu braço e o medo que eu senti quando ele começou a gritar comigo. Devia ser coisa da minha cabeça mesmo, eu tinha que parar de ser tão possessiva. Como eu podia desconfiar do homem que fazia tanto por mim?


Nossa história teve muitos outros capítulos, rodeados de passeios, presentes, surpresas maravilhosas, mas também discussões, crises de ciúmes, empurrões e muitas ofensas. Quando eu estava ali, no meio daquilo que se transformara a minha vida, eu não percebia o quanto as coisas tinham mudado. Eu mal saía de casa e estava magra, muito magra. Me sentia muito frágil e com muita sorte por ter o Bruno comigo. As coisas não iam bem com a loja e estava difícil arranjar emprego como professora, já que eu tinha pouquíssima experiência. Eu ficava contando as horas esperando o Bruno chegar, o que às vezes demorava muito. Meu aniversário de 27 anos ia se aproximando e já seria o terceiro ano que eu não comemoraria. Quando o Bruno me viu chorando, ele se explicou:


- Eu nunca te impedi de comemorar seu aniversário, Bia. Eu só digo que acho bobeira, a gente poderia comer alguma coisa aqui em casa e pronto, mas se é tão importante para você, tudo bem, amor.


Marquei então um barzinho com os amigos no final de semana seguinte e fiquei muito feliz de rever tantas pessoas queridas. Conversei, dancei, estava leve como há muito tempo não me sentia. De vez em quando eu olhava para o Bruno meio receosa, mas ele estava quase sempre sorrindo, então isso me deixou relaxada. Cantamos os parabéns e umas 2 horas da manhã fomos para casa. Quando eu já estava indo abraçá-lo toda radiante, ele fechou a cara. Disse que eu estava ridícula, bêbada, que eu não tinha aprendido nada. Falou que eu estava me exibindo com a barriga de fora e que passei a noite inteira dando mole para os caras que estavam comigo.


- É por isso que eu não gosto que a gente saia. Você não pode ver ninguém te dando confiança que já fica se achando linda, maravilhosa. Se olha no espelho, Beatriz. Você não se cuida e depois reclama de eu olhar outras mulheres. Eu não posso olhar mulher nenhuma, né? Mas você pode ficar de papinho com o primeiro que aparece.


Quando o segui até o banheiro para me defender daqueles absurdos que ele estava falando, ele me deu um soco no olho esquerdo.


- Eu vou sair daqui para não fazer merda! – chutou a parede e depois eu só ouvi o barulho da porta batendo com força.


Caída sobre o chão frio do banheiro, eu observava as gotas de sangue colorindo, uma a uma, o branco do azulejo. Cada uma me arrancando um pedaço. Fraca, abatida, desesperançosa, violada, moída, sozinha. Sentia-me sem forma, um bocado de farelos do alguém que eu já fora. O vermelho me gritava aos olhos, como se toda aquela cor fosse um último pedido de ajuda do que ainda restava de mim, um apelo da alma expelido pelo corpo. “Chega”, eu sussurrava. “Chega!”, repetia tentando me convencer. “Chega, CHEGA, CHEEEGAAA!” Gritava eu, apoiando as mãos no chão para me levantar. Encarei o espelho, aquele para o qual fazia tanto tempo que eu não olhava. Lembrei-me da noite em que conheci Bruno e como naquele dia o meu reflexo era tão diferente. Eu era apenas uma sombra daquela mulher tão dona de si. CHEGA!


Lavei rapidamente a ferida que se abriu em meu supercílio, improvisei um curativo e saí enfiando em uma mochila tudo aquilo que me parecia mais essencial. Cheguei na casa dos meus pais envergonhada por ter apanhado, pensando em como explicar o que tinha acontecido. Não sabia se eles iriam me receber depois de tanto tempo que eu passei sendo tão fria e distante, faltando aos almoços de domingo e até alguns aniversários. Por isso, eu passei algum tempo sentada em frente à porta, respirando fundo, me preparando para ouvir o que eu sabia que doeria, mas que era verdade: eles tinham me avisado que era cedo quando saí de casa, tinham me alertado sobre o comportamento dele. Mas eu era incapaz de ver. Quando, enfim, tomei coragem de tocar a campainha, meu pai abriu a porta com um sorriso no rosto, que logo se transformou em um olhar preocupado e um abraço:


-Minha menina! Entra, nós vamos cuidar de você...


Bruno me ligou inúmeras vezes, foi atrás de mim na faculdade, na academia, até ficou me esperando em frente a casa dos meus pais uma vez, mas eles ameaçaram chamar a polícia. Nem sei quantas vezes ele disse que se mataria. Mandava mensagens e mensagens tentando me convencer de que ele iria mudar, que ele só tinha me batido porque eu tinha deixado ele com ciúmes, ou porque eu insistia em fazer coisas que ele não gostava, mas que ele não faria mais isso. Que ele me amava e que não estava pensando quando me machucou. Eu lia tudo, ouvia o que ele tinha para dizer e parte de mim queria muito acreditar, mas eu estava determinada a não mais acreditar em um amor que eu queria que fosse verdade, mas não era. E o dia em que eu resolvi não atender mais as ligações dele, ou ler suas mensagens, foi o dia em que escrevi publicamente este desabafo:

 

Você diz que me ama, mas que ama demais.

Eu sou delicada, doce, porém impulsiva.

Sou cabeça fraca, me influencio sem perceber

E só por isso você não me divide com ninguém

 

Você diz que me admira, mas o tempo todo me critica.

Me faz desistir de projetos, não me incentiva.

Diz que que quer me proteger.

Você faz isso para o meu bem.

 

 Quando você me trai, a culpa é do meu desleixo,

Ou é coisa da minha cabeça explosiva.

Diz que ninguém vai me amar como você,

Jamais encontrarei outro alguém

 

Para que comemorar aniversário?

Ir à minha formatura, para quê?

Tudo isso é uma grande besteira,

Se eu puder estar ao lado do meu bem.

 

 Mas agora sou eu que tenho algo a dizer:

 

Quem ama não anula,

Não humilha, não descrê.

Quem ama não macula,

Não ofende o bem querer.

Quem ama escuta,

Voa e deixa voar.

Quem ama não chuta,

Não bate, não faz sangrar.

Amor não é para doer.

Amor é para doar.

Amor não desfigura

Nem corpo, nem coração.

Quem ama estende a mão,

Tira o outro do chão,

Perdoa e pede perdão.

Isso que você faz não é amor.

Isso não é nem paixão.

Isso é chantagem, covardia, rancor,

É ser para o outro destruição.

Cada pedaço que você triturou

Quer vomitar na sua direção.

Desintoxicar de todo esse horror

Regenerar-se em autocompaixão.

 

                                                            Eu me amo, apesar de você.                    

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Aqui embaixo - Capítulo 1 - O primeiro amor

em quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

 - Oi, Beatriz – disse Caio, abrindo os braços para o que parecia se transformar em um abraço.


Aquilo era novo. Até o ano anterior, os únicos toques que costumávamos trocar eram nas brincadeiras de polícia e ladrão, ou para empurrar o outro na piscina. Mas não era só isso que estava diferente. O menino parecia ter crescido uns trinta centímetros desde a última vez que tínhamos nos visto. E de onde vieram aquele queixo forte, a covinha e o ombro largo...? Enquanto me perguntava se tudo aquilo sempre esteve ali, me dei conta de que ainda não tinha emitido um som sequer. Senti as bochechas queimarem, torcendo para minha famosa facilidade em ruborizar não denunciar a minha confusão.


- Oi, Caio. Quanto tempo!


Era tão estranho toda aquela formalidade! Eu tentava entender o que tinha acontecido durante o ano que estivemos longe, para que, de repente, a nossa conversa se tornasse algo tão robótico e extremamente constrangedor. Apressei-me então na direção das meninas da casa amarela, que sempre me aguardavam na porta, quando sabiam que eu estava chegando.


Já era o quinto ano que eu passava as férias naquela vila de casas na Taquara. Meus pais trabalhavam muito e dificilmente conseguiam conciliar as férias do trabalho com as minhas escolares, mas eu não tinha do que reclamar. Considerava aquele casarão o meu paraíso particular e o condomínio era o meu quintal de luxo. Piscinas, quadras e um bando de adolescentes como eu: sem nada para fazer e com muita energia para gastar. Passávamos horas da nossa vida correndo de um lado para o outro, subindo em árvores, conversando sentados na calçada de frente para a porta de alguém, comendo sacolé da Dona Neusa e explorando tudo o que uma boa infância pode proporcionar. No ano anterior, porém, já tinha sido um pouco diferente. Meninos e meninas pareciam ter se tornado dois grupos separados. Lembro de minhas amigas flertarem com alguns meninos e até de dar cobertura para alguns selinhos. Elas falavam sobre roupas da moda, maquiagem e eu me via completamente entediada. Por isso, eu estava animada, mas também um pouco receosa.


Quando cheguei dessa vez e vi os meninos jogando bola na rua, todo o receio foi embora. Já planejava largar as malas na sala, colocar uma roupa mais confortável e ir lá jogar com eles. Mas não consegui ignorar a sensação estranha que eu tive quando vi o Caio e, principalmente, os pequenos choquinhos que percorreram meu corpo de cima abaixo quando ele me abraçou. Repassei a cena na minha cabeça várias e várias vezes para tentar compreender. Cheguei a cogitar que talvez fosse a sua voz, agora mais grave e rouca, que fizesse ele parecer outra pessoa. Depois pensei também que eu pudesse só ter gostado do perfume dele, e, por isso, não conseguia esquecer o aroma. Mas, por fim, minhas assustadoras suspeitas se confirmaram: eu estava apaixonada!


Foi quando eu procurava um esconderijo novo na região de um bosque mal iluminado que eu enfiei o pé em algum buraco e o torci. Não senti dor de imediato, só levei mesmo um baita susto, o que me fez dar um grito e sentir raiva, pensando que me encontrariam antes mesmo de eu ter me escondido. Só no momento em que tentei dar o primeiro passo pós-buraco é que entendi a gravidade da coisa e então gritei mesmo para ser encontrada, mas ninguém me ouvia. Não sei quantos minutos passei ali no chão, chorando. Mas, como uma boa adolescente, eu tinha talento para o drama. Por isso, minha mente começou a divagar. Enquanto me imaginava em meu leito de morte, tentei visualizar o rosto da última pessoa que eu queria ver antes de fechar os olhos e foi então que observei se desenhar, traço por traço – a começar pela covinha – o rosto de Caio. Tudo se sacramentou no momento em que meus amigos, que - depois eu soube - estavam em uma dedicada busca por mim, vieram correndo ao meu encontro. Caio, numa verdadeira cena de cinema, me carregou nos braços pelas centenas de metros que separavam o fatídico buraco da casa de minha tia. Foi um misto de dor e calafrios inexplicável.


A partir desse momento, me dei por vencida. Eu estava mesmo apaixonada e agora precisava lidar com isso. Não dava nem para sonhar em ser correspondida, tendo em vista que todas as vezes em que esbarrava com ele pelo condomínio, eu era acometida por uma imediata incapacidade de concluir frases. Fazia comentários soltos, como: “E aí?”, “Total!”; “Eita...”. Por isso, não foi sem surpresa que avistei uma mensagem no meu celular no último dia das minhas férias, com os seguintes dizeres: “Ei, Bia! Aqui é o Caio. Peguei seu número com as meninas... Achei que seria legal se a gente continuasse mantendo contato. É isso. Boas aulas!”.


Foram meses e meses de trocas de mensagem, falando sobre qualquer coisa. Me lembro da maravilhosa sensação de ver o nome do Caio piscando na tela do meu celular. Não foi fácil conseguir um primeiro encontro, porque não achava nada simples compartilhar com os meus pais meus sentimentos por um menino, então eu precisei elaborar algumas pequenas mentiras, fazendo minhas amigas de cúmplices. Quando enfim aconteceu o tão esperado pedido, tive a inevitável conversa com meus pais e, não sem resistência, estava enfim namorando.


Foi com o Caio que comecei a conhecer melhor o mundo fora minha rotina casa-escola. Passei a andar de ônibus, juntar dinheiro para ir a shows e passeios e descobri uma verdadeira paixão pelas trilhas. A gente simplesmente amava passar nossas horas no meio da natureza, gastando só com passagens e lanches, apreciando vistas maravilhosas e momentos muito especiais. Foram muitos piqueniques, perrengues e aventuras, mas o meu dia favorito foi quando, no alto da Pedra Bonita, ele tirou uma gaita da mochila e tocou Garota de Ipanema para mim. Eu nem sabia que ele tinha uma gaita. Mas esse era o Caio, surpreendente.


Ele era meu confidente e meu grande incentivador. Hoje eu sei que teve grande participação na mulher que me tornei. Crescemos juntos, construímos juntos o nosso caráter. Ele me abriu os olhos para um mundo diferente do que eu conhecia e eu acho que contribuí de alguma forma com ele também. Por isso, lembrar desse tempo é tão gostoso e sem dor. É só saudade, até mesmo dos momentos das brigas e dos problemas que pareciam tão grandes, mas eram minúsculos.


Eu tinha certeza de que me casaria com ele. Já conseguia pensar na nossa casa de campo com nossos quatro filhos e um cachorro pelo quintal. Eu não conseguia cogitar gostar de outra pessoa na minha vida como eu gostava dele. Mas a verdade é que o que eu achei que seria uma vida inteira foram, na verdade, três maravilhosos anos. Depois disso, eu não sei nem dizer direito o porquê terminamos, mas acho que simplesmente mudamos. Já não nos arrepiávamos com tanta facilidade, nem sentíamos o ar faltar só de pensar em estar longe. E quando as coisas se acalmaram, começamos a notar nossas diferenças. O gran finale de nosso romance veio com uma mensagem que o Caio escreveu para uma amiga e me enviou por engano, reclamando das minhas constantes mudanças de humor. Parece que esta mensagem trouxe à tona uma conversa cheia de pensamentos que ele não tinha ainda compartilhado comigo e a dura constatação de que eu gostava mais dele do que ele de mim. Caio queria lutar por nós, mas eu disse que eu merecia estar com alguém que me amasse.


 Me senti tão extremamente madura naquele dia. Ao mesmo tempo que parecia ser a maior dor que eu já tinha sentido - pior até que a torção no pé -, eu me sentia como a protagonista de um filme de comédia romântica, que iria passar um tempo sozinha, até tropeçar na rua direto para os braços do meu futuro eterno amor. Infelizmente, a vida não é sempre tão leve assim e se fosse para ter algo de Holywoodiano na sequência da minha história, estava mais para um suspense, drama ou terror. Eu queria ter conseguido preservar as doces frustrações de um relacionamento adolescente, mas a verdade é que, às vezes, a vida é realmente dura, cruel e dolorosa e pelos longos anos que se seguiram, eu senti falta daquela menina cheia de amor-próprio. Tinha até me esquecido que ela era eu.

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3h22 - Texto da série "Com amor, para você - Escritos para amigos"

em sábado, 31 de outubro de 2020

 3h22. É a quarta vez que ela acorda com aquele choro agudo e faminto. “Essa é uma daquelas noites”, pensa ela.  Olha para a cria se remexendo de um lado e a figura sonolenta do marido do outro, tentando demonstrar alguma solidariedade, mas voltando a dormir por saber que não há muito o que fazer. Uma fábrica de leite, era assim que ela se via. Estava cansada e cheia de faltas. Falta colágeno, falta sono, falta autoestima, falta tempo, falta liberdade.


Graças a Deus ninguém podia ouvir os pensamentos que lhe invadiam vez ou outra. Lembrou-se do sonho que tivera há uns dias. Não recordava de todos os detalhes, mas era viva a cena de deixar uma carta sobre a mesa da sala, sair apressada e pegar o primeiro ônibus que via. Seu semblante era leve, mesmo com as olheiras. No meio de um sorriso com cabelos ao vento, ela acordou, quase decepcionada, o que era horrível, mas igualmente inevitável. 


Não é que não houvesse amor, isso ela tinha e muito. Aliás, provavelmente essa era a única coisa que a separava do sonho. Mas amar aquele serzinho indefeso e totalmente dependente não anulava tudo o que ela já havia sido até ali. Em meio a tantas fraldas e tarefas do lar, ela sentia falta de se arrumar para o trabalho, de avaliar planilhas e dar orientações. Sentia falta de ler um livro sem ter hora para acabar, ou de ir para algum lugar que não fosse uma caixa de concreto. Sentia falta de não fazer absolutamente nada. Falta de transar quando desse vontade. E falta de ter vontade de transar. 


Sentia falta de se reconhecer. 


Sim, a maternidade foi uma escolha, mas isso pouco amenizou a dificuldade das mudanças. A verdade é que ela tinha ouvido falar, mas ela não sabia. E ninguém podia saber por ela. Era tão individual que ela tinha dificuldade de explicar. Mas era real e latente. Ela estava um caos e precisava ser calmaria para outro alguém. Precisava de descanso e empatia, precisava de uma pausa para se revigorar. Mas a vida não pausa, não tem saída. E no meio disso tudo, ela não sabe, não percebe ou não se lembra do quanto é admirável, de como é forte, interessante, criativa e atraente. Mas ela é. Não acredita que as coisas vão melhorar. Mas elas vão. Não vê o quanto ela já superou e aprendeu até aqui. Mas aconteceu. 


Ela vai se encontrar, vai se equilibrar, vai, mais uma vez, se multiplicar em mil para dar conta de tudo o que ela quer e gosta de ser. Porque ela é mãe, mas não é só mãe. Ela é mulher, é empreendedora, é artista, é filha, é amiga, é jovem, é divertida, é brilhante. E é mãe. E ela vai dar um jeitinho, como sempre deu, de dar o seu o melhor em ser tudo isso. Não é questão de egoísmo, é questão de identidade.

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Furta-cor

em terça-feira, 22 de setembro de 2020

Eu caminhava livre. Já há muito não era atormentada pela psique desgovernada de alguém que ama. Seguia intacta, invicta, ilesa. Flores não esperava, romance não desejava, amarras não suportava e me parecia medíocre a ideia de querer me completar em outro alguém.


“Besteira!”, eu proclamava orgulhosa diante de tantas caricaturas clichês sobre felicidade. E foi daí, do alto de minha autossuficiência que eu caí.


Vacilei.


Não vi risco em te achar interessante, não me sobressaltaram aos olhos os sinais da perdição. Ri das tuas histórias, bebi dos teus encantos, afaguei teu pranto. Comi no prato em que cuspi.


Depois que eu te amei, não pude me rearmar. Sigo desprotegida, admiro pôr do sol, choro com finais felizes, sorrio de manhã.


Agora me diz o que fazer, se você foi e eu fiquei. Aqui. Sozinha. Desarmada. Nua. À deriva, por alguém cujo único delito foi partir, justamente quando decidi aposentar minhas botas. Agora flores me interessam, mas eu não sei pedir.


Só me resta admirar a aquarela de possibilidades que você me abriu, e se esqueceu de apagar ao partir. Antes, livre em preto e branco. Agora, prisioneira furta-cor.

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Phronesis - Parte 3

em sábado, 22 de agosto de 2020

 Um belo dia de sol podia ser visto da varanda da casa Phronesis. Os retirantes já pareciam mais à vontade em andar pelos corredores do local. Aparentemente, todos aqueles dias passados ali haviam trazido uma sensação de familiaridade com o ambiente e até com as pessoas, mesmo que elas não trocassem muitas palavras e não conhecessem as histórias umas das outras. Cauã já havia traçado um perfil para praticamente todos os participantes, apenas pela maneira como se comportavam ou se vestiam. Reparou, inclusive, que o rapaz que parecia ser o mais novo entre os que viviam o isolamento não aparecera mais desde a dinâmica da pintura. Parecera disperso durante a atividade, ou talvez incomodado.


- Hoje eu vou contar para vocês – começava Isaías - sobre a vida do homem que inspira esse curso, homem cujas ideias perpassam por tudo o que estamos experimentando ao longo destes dias. Viktor Emil Frankl foi um médico e psiquiatra austríaco que se tornou mundialmente conhecido após os relatos de sua experiência pelos quatro campos de concentração por onde passou como prisioneiro do nazismo. Em seu livro “Em busca de sentido”, ele descreve como pôde aplicar e testar, em si mesmo e até em alguns poucos companheiros de prisão, o método psicológico que já vinha desenvolvendo antes de se tornar um prisioneiro. Esse método é a Logoterapia, que tem por base a esperança e o sentido de vida. O ensaio psicológico relatado é de uma riqueza impressionante e precisaríamos de muitos dias para explorá-lo a fundo. Mas eu queria destacar algumas coisas para vocês.


O reitor juntou-se aos retirantes, sentando-se em uma das almofadas espalhadas pela varanda, fechando, desta maneira, o círculo que se formava.


- Frankl conta que, logo na chegada ao campo de concentração, os prisioneiros já eram destituídos de tudo: roupas, pertences pessoais e até mesmo de sua dignidade. A única coisa que lhes restava era o próprio corpo sem pelos, e mesmo assim, por pouco tempo. Logo perceberiam que até os seus corpos estavam submetidos ao domínio de outros. Os prisioneiros sofriam torturas, humilhações, doenças e noites sem dormir, que aos poucos iam criando um estado emocional e psicológico de muita fragilidade. Passavam a ter um único objetivo: sobreviver. Entretanto, Viktor começou a perceber que, ao longo do tempo, muitos desistiam de lutar e se entregavam à apatia ou mesmo ao suicídio. Foi aí que ele fez um pacto consigo mesmo: prometeu que nunca se jogaria contra a cerca elétrica e, no que dependesse dele, lutaria com todas as forças pela vida. Seguindo então com firmeza o seu propósito de se manter vivo, o psiquiatra observa que o psiquismo dos prisioneiros acaba entrando numa espécie de mecanismo de autodefesa, de forma que quase nada os sensibiliza e o lado mais animal e instintivo do ser humano acaba se destacando. Conseguem pensar em alguma possível situação que retrate isso dentro de um campo de concentração?


Isaías esperou que alguém se manifestasse, mas nenhum dos retirantes pareceu dar sinais de ter respostas a essa pergunta.


- Difícil imaginar, né? De fato, por mais que muito já se tenha falado ao longo da história sobre a realidade nazista, é realmente difícil assimilar o que pode ter acontecido naqueles campos de concentração. Pois bem, Frankl percebe que muitos dos que estavam ali presos passam a ter comportamentos questionáveis, como roubar algo de outro prisioneiro, buscar ser mais esperto na hora de receber a sopa para a alimentação, comemorar por outro ter sido escolhido para a morte na câmera de gás... É claro que é compreensível que ninguém quisesse ser escolhido, mas chama a atenção a insensibilidade à morte do outro. O psiquiatra nota que ao mesmo tempo em que alguns prisioneiros escravizavam e maltratavam seus próprios conterrâneos, havia dentre os soldados aqueles que eram menos duros e que tentavam de alguma forma ajudar. É a partir daí que Frankl conclui que o caráter e a força de vida que havia dentro de alguns davam-lhes condições de responder de forma diferente mesmo em meio a tantos sofrimentos e facilidade de exercer algum poder. Está aí o que realmente não pode ser retirado de um homem: a sua liberdade interior, o seu poder de escolha.


- Isso lembra o que foi falado na primeira aula: “a melhor forma de viver é aquela que é possível” - apontou um dos retirantes.


- Sim, exatamente! Nesse sentido, Viktor ainda se aprofunda um pouco mais, descrevendo a base da sua ciência desta forma: sempre há motivo para viver e a vida sempre vale a pena em qualquer circunstância. Conclui isso ao perceber que a esperança era o fio condutor que possibilitava o desejo de viver, pois aqueles que tinham um motivo do outro lado dos muros dos campos de concentração, como um amor, um projeto ou uma pessoa que esperava, já encontrava motivo suficiente para se manter vivo. E então eu convido vocês a novas reflexões... Durante este retiro, vocês se depararam com muitos sentimentos, certo? Muitos estiveram conversando com os psicólogos da casa, falando sobre recordações dolorosas que acabaram revisitando, ou sobre percepções de insatisfações presentes... tudo muito estimulado pelos pensamentos filosóficos que foram apresentados, por aquilo que a arte nos permite acessar e pelos questionamentos que fizemos. Diante de tudo o que vocês sentiram e viveram, e pensando no que diz Viktor Frankl sobre a vida sempre ter sentido independente das circunstâncias, eu pergunto: Será que as dores, os sofrimentos, as frustrações, que fazem parte da vida, não devem também ter sentido? Se sim, que sentido elas têm hoje para você? Será que é possível e, quem sabe, necessário, ressignificá-las?


Estimulado pelas perguntas do reitor, Cauã se viu retomando a cena de meses atrás. Podia reviver com exatidão aquela latente sensação de confusão e impotência.


-  Ó, meu Deus – exclamou a enfermeira. – Alguém chame o Dr. Carlos, por favor.


Cauã observava a roupa que vestia, aquela camisola que vira em tantos filmes, mas que não se lembrava de alguma vez já ter usado. Ouvia o barulho dos aparelhos ao seu lado, sons que lhe geravam mal estar. Observou o tubo que lhe saía do braço esquerdo, quase ao mesmo tempo em que se deu conta da secura de sua boca.


- O que está acontecendo? – perguntou o rapaz.


- Sr. Cauã, acalme-se, o senhor está em um hospital e o Doutor Carlos, que tem cuidado de você, está a caminho para lhe explicar tudo, está bem?


Entretanto, calma era algo que o rapaz não tinha naquele momento. Sentia seus reflexos extremamente lentos, olhos que mal se abriam e uma visão embaçada. Virou o pescoço em busca de alguma imagem que pudesse lhe ajudar a entender o que se passava. Viu a enfermeira anotar algo no prontuário em suas mãos. Se esforçou para tentar decifrar que palavras aqueles riscos sobre o papel poderiam estar formando, mas os dedos eram extremamente ágeis. O rapaz ainda constatou que a enfermeira era canhota, observando a aliança em seu anelar acompanhando os movimentos frenéticos daquelas anotações. A visão do anel pareceu lhe conduzir novamente ao lugar de suas últimas lembranças.


- Essa não, essa não! Que dia é hoje? – Perguntou o jovem se sentando na cama, com uma velocidade que lhe fez doer a coluna.


- É melhor esperarmos o Dr. Carlos chegar. Ele já está a caminho e... – a enfermeira foi interrompida pelo grito assustado do rapaz, que mirava um quadro branco no corredor.


- 15 DE DEZEMBRO DE 2020? – os olhos esbugalhados. – Não é possível... Isso é alguma pegadinha? Porque é de muito mal gosto. O que diabos está acontecendo?


Cauã tentava se concentrar no que o médico dizia, mas estava realmente difícil assimilar aquilo tudo. O acidente, o traumatismo craniano, o coma de quase um ano... Só queria ver Carla e sua família.


- Eles estão a caminho, Cauã. Em poucos minutos estarão aqui – acalmava-o a enfermeira.


Enquanto aguardava, reparava uma certa apreensão entre médico e enfermeira, como se houvesse algo que não estivessem lhe contando. Será que ele tinha ficado com alguma sequela? Sabia que todos os seus sentidos estavam ótimos e, apesar de ainda não ter se levantado, já havia movimentado pernas e braços. Começou a pensar se havia acontecido algo a algum de seus familiares. Tentou controlar a sua ansiedade, afinal aquilo não era nem de seu feitio. Não costumava ser tão acelerado assim, mas há de se convir que a situação era extremamente angustiante.


Longos minutos se passaram até que ele avistasse o primeiro rosto familiar. Sua mãe se aproximava com os olhos vermelhos. As lágrimas encharcavam a máscara que lhe cobria o nariz e a boca. Em seguida, brotava a figura robusta do pai, que também parecia emocionado, mas era difícil dizer por conta da máscara. Em meio à confusão toda, Cauã não teve tempo de questionar o porquê de tudo aquilo. Quando sua mãe viera lhe abraçar, foi repreendida pela enfermeira que pediu para conversarem lá fora. O pai, por sua vez, se manteve à entrada do quarto, olhando para o filho com uma expressão que demonstrava alegria, mas também uma certa piedade.


Cauã precisou de muitos dias para assimilar tudo o que havia acontecido. Não bastasse a história do acidente, um dia antes de seu casamento, ele ainda precisaria lidar com um mundo completamente diferente do que havia conhecido antes do coma. Um mundo doente, de portas fechadas por medo de um vírus altamente contagioso e vez ou outra fatal.

__________

No último dia do 3º Retiro de Isolamento Social da Casa Phronesis, os participantes puderam enfim contar suas histórias e os motivos que os levaram até ali. Todos ficaram realmente impactados com a fala de Cauã. Ele podia notar as expressões de solidariedade quando falava sobre a sensação de sair do hospital usando uma máscara e ver tantos cartazes pela rua estimulando as pessoas a ficarem em casa. Contava sobre o quanto sua mãe chorava quando pôde enfim lhe abraçar, após ter um resultado negativo no exame de COVID-19 e sobre a sua surpresa ao notar o tanto de pessoas que ele via em suas redes sociais iniciando novos projetos ou expondo lados que ele ainda não conhecia. O advogado falou sobre o quanto tudo aquilo lhe era perturbador e como sentia que a única pessoa que ainda buscava viver conforme seus planejamentos era ele mesmo. Até a sua noiva, que era sempre tão parceira e carinhosa, parecia estar diferente. Ele não conseguia entender que ela que - não fosse o acidente - estaria casada com ele, estivesse disposta a ir para outro país fazer um curso para investir na profissão de escritora. Parecia que ele namorava outra pessoa, uma sonhadora sem os pés no chão. Explicou que sempre reconhecera o quanto ela era boa na escrita, mas daí a largar tudo e adiar mais ainda o casamento deles... Já era demais.


Após a roda de conversa e mais algumas falas do reitor, os participantes foram então liberados. Cauã foi tomado por uma sensação nostálgica ao observar aquela casa que lhe serviu de lar por quinze dias. Um lar de muitas transformações que ele não poderia prever. Entrou no carro com um destino em mente.


- Oi! – Carla abriu a porta com um olhar carinhoso e uma postura contida – Não sabia que viria tão cedo.


Deram um selinho e Cauã a abraçou por bastante tempo, o que fez a moça baixar a guarda.


- Eu queria te mostrar uma coisa. Espero que não se assuste... – disse o rapaz entregando à noiva o papel que trazia dobrado no bolso:


Quando menino, eu era Capitão.

Na juventude, cheio de opinião.

Agora adulto, cubro o rosto,

não quero exposição.

 

Eu quero proteção.

Sou feito de discrição.

Não sonho, não arrisco,

gente séria faz isso não.

 

Eu vi máscaras penduradas.

Dor, horror, indignação.

Em meio ao grito de tantas vozes,

falava mais alto a da negação.

 

Precisei de tempo para entender

que as máscaras eram transformação

e agora digo que, da minha vida,

sou novamente o Capitão.

 

- Você escreveu isso?


- Sim, na verdade é para ser uma música, mas ainda não consegui evoluir muito nessa parte. – Cauã se sentia comovido com os olhos marejados da mulher que amava – Eu entendo agora, meu amor. Faça o que precisa fazer. Quer dizer, eu sei que você faria de qualquer forma, mas eu estou contigo nessa. A gente dá um jeito...


Carla saltou num abraço apertado, envolvendo o quadril do rapaz com suas pernas.


- O que te fez mudar de ideia? – perguntava a moça ainda em seu colo.


- Aprendi com umas pessoas que quem tem um “porquê”, suporta qualquer “como”.

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Phronesis - Parte 2

 No segundo dia, às dez horas, já estavam todos novamente reunidos naquela mesma sala. Isaías mantinha o semblante simpático do dia anterior e começava as reflexões com algumas perguntas. “Como eu vejo o mundo?”, “Como me relaciono com as pessoas ao meu redor?”, “Sou uma pessoa aberta ou fechada ao novo?”... Todos os participantes iam anotando suas respostas. Vez ou outra, Cauã levantava a cabeça para reparar as reações dos outros retirantes e se eles também pareciam ter dificuldade em responder algumas das indagações.


- Baruch Spinoza foi um dos grandes filósofos do século XVII - prosseguia o reitor - dentro da chamada Filosofia Moderna. Ele defendia que o corpo é uma potência em ato, uma força de existir. Pensando desta forma, entendia as afecções como sendo o encontro pontual de um corpo com outro, o que quer dizer que um corpo pode afetar e ser afetado. Dizia ainda que nos relacionarmos com outras pessoas é o mesmo que ser afetados por elas, isto é, sofremos uma alteração, uma passagem: nossa potência aumenta ou diminui. Destas afecções, ocorrem os afetos, uma experiência vivida, uma transição. Estão conseguindo acompanhar?


A senhora de cabelos brancos, lisos e compridos, sentada bem à frente do professor, balançava a cabeça enfaticamente.


- Perfeitamente, reitor – dizia ela. – Todas as pessoas que passam pelas nossas vidas nos modificam de alguma forma.


- Sim... E Spinoza ainda se preocupou em dividir essas relações em dois grupos. O primeiro são as relações que aumentam a nossa capacidade de agir, o que ele chama de um afeto de alegria, ou um bom-encontro. Acontece quando uma afecção nos leva para uma potência maior de ser e agir no mundo; isso porque encontramos um corpo que combina com o nosso, que possui propriedades que se compõem com as nossas. Os bons- encontros são sempre momentos nos quais nos tornamos mais próximos do mundo e de nós mesmos, ampliando a nossa capacidade de afetar e ser afetado. Já o segundo grupo seria aquele relacionado aos afetos de tristeza, ou aos maus-encontros. Ocorrem quando uma afecção nos leva para uma condição menor de potência, ou seja, nossa força para existir e agir, afetar e ser afetado, diminui, passamos para uma perfeição menor. São todos os encontros que nos afastam da realidade e de nós mesmos, nos limitando, constrangendo, e nos fechando para o mundo.


Isaías demorou-se ainda mais alguns minutos nas explicações sobre os bons e maus encontros de Spinoza, mas Cauã já havia entendido perfeitamente. E, por isso, quando o reitor solicitou que listassem em seus cadernos pessoas que lhe representavam bons encontros, o rapaz já estava certo do primeiro nome que deveria rabiscar no papel: Carla.


Já havia se passado cinco anos desde o primeiro beijo dos dois, na festa em comemoração ao trigésimo aniversário de Marcos, amigo de infância de Cauã. Apesar do tempo, lembrava-se com perfeição do vestido amarelo-mostarda que usava a menina do cabelo curto e despojado. Mesmo sem conhecê-la, podia dizer que tinha personalidade, só pela maneira como gesticulava e como suas sobrancelhas se movimentavam naquele rosto expressivo. Precisou apenas de três cervejas para se sentir encorajado a puxar assunto. Mal sabia ele que aquela conversa lhe traria tanto.


Lembrava-se de ter se dado conta disso de maneira muito latente no dia do acidente, antes de tudo acontecer. Havia levantado cedo para malhar antes dos trabalho, porque dessa vez aproveitaria o horário de almoço para passar na loja de aluguel de roupas. Era um homem vaidoso e, por isso, não se preocupou em economizar... afinal, tratava-se do seu casamento.


Tomou um café reforçado, constatando ser o último que desfrutaria em seu apartamento no Grajaú. Ainda naquele dia iria para o hotel em Búzios onde se realizariam a cerimônia e a festa que vinham planejando há tantos meses. Lançou um olhar nostálgico pelo apartamento: pequeno, simples, mas Deus sabe o que aquelas paredes já haviam testemunhado! As noites de jogos e cerveja com os amigos, as madrugadas que ele passou em claro junto aos livros de Direito, as mulheres que já tinham dormido em sua cama... e, principalmente, todo o relacionamento com Carla. Pegou-se sorrindo ao lembrar da primeira vez em que a moça esteve por lá, tentando disfarçar - observadora e perfeccionista - o desconforto por conta da pintura descascada da parede e da desarmonia dos móveis da sala.


__________

Durante os dois dias de confinamento no quarto, Cauã pôde usufruir de tudo o que tinha consigo. Isaías havia explicado que após tantos estímulos e provocações filosóficas e, tendo em vista todas as obras de arte, filmes, músicas que eles já haviam contemplado, era hora de deixar tudo aquilo ser digerido e vivenciado no momento em que estivessem sozinhos. 


Nos dias anteriores, o jovem advogado já havia usado o notebook algumas vezes para utilizar o material que estava no pen drive, mas ainda não tinha parado para ler seus e-mails ou assistir alguma série. O reitor havia sido claro: eles eram completamente livres para fazer o que quisessem, contanto que não saíssem dos quartos. Então Cauã não se incomodou em colocar algumas das suas séries em dia. Entretanto, lá pelo quarto episódio, se sentia estranho, vazio. Pensou então em fazer uma chamada de vídeo para se distrair um pouco, mas teve dificuldade de pensar em alguém. Afinal, apesar de sentir muitas saudades de Carla, haviam combinado que só voltariam a se falar após o término do retiro. E não queria que seus pais ou amigos soubessem que ele estava ali, era difícil explicar. Se nem ele entendia direito... Pensou então em Marcos. Eles haviam conversado uma vez sobre a loucura que eram esses retiros que começavam a pipocar pela cidade. Apesar de concordarem ser algo muito estranho e até um pouco perturbador, Marcos acabou se mostrando intrigado.


- Fala, irmão – atendeu o rapaz, usando uma camisa social.


- Ih, cara, desculpa. Acabei perdendo totalmente a noção de tempo. Hoje é terça-feira, né? Você está no trabalho. Eu ligo outra hora.


- Não, pode falar. Só estamos eu e a secretária aqui hoje. O resto do pessoal está em home office. A empresa resolveu manter esse esquema porque os resultados acabaram sendo muito bons durante a quarentena.  E onde você está? Parece um hotel. Tá viajando?


- Não... Então... – Cauã tinha dificuldades de contar para o amigo. Tentou forçar um ar de casualidade. – Lembra de um papo que tivemos sobre aqueles retiros que estavam começando a acontecer depois da pandemia? Então, eu resolvi ver como era.


- Tu tá falando sério?


- Sim. - Cauã se arrependeu imediatamente de ter falado.


- Cara, depois me explica isso direito. Que loucura!


O silêncio se instaurou por segundos torturantes e então Cauã resolveu encerrar a conversa que mal tinha começado.


- Valeu, irmão. Eu vou precisar sair aqui. Só queria te contar essa história, nem eu estou acreditando direito. Não comenta com os caras não, tá? Deixa que eu quero contar depois.


- Beleza, vou comentar nada não. E, irmão, aproveita aí. Sei que você deve ter ido mais com um espírito de exploração e tal, mas você passou por tanta coisa... Acho que pode ser muito bom ter um tempo para pensar sobre isso... – a voz de Marcos pareceu embargar e ele logo se apressou em desligar. – Mas é isso, cara. Vou voltar aqui para o projeto que estou finalizando. A gente se fala!


Cauã desligou com os olhos marejados. Marcos definitivamente era um bom-encontro. Não era muito comum os amigos demonstrarem suas emoções, não era o tipo de assunto que os homens costumavam ter. Na verdade, nada daquilo que o rapaz estava vivendo nos últimos dias lhe era habitual. Quando estava fazendo a dinâmica da pintura, lembrou-se de um momento de sua infância em que ele e seu pai envernizavam um escudo de madeira que haviam feito. O menino usava uma máscara do Capitão América e o pai, uma do Batman. Lembrava-se da sensação de construir a sua própria ferramenta e de como era legal fazer aquilo junto do homem que ele tanto admirava. Mas ele nunca falou dessa lembrança. Era como se expor seus sentimentos o deixasse vulnerável, o violasse de certa forma.


Motivado por toda aquela nostalgia e retomando tantas falas recentes de Isaías sobre a força da arte na alma humana, Cauã viu-se motivado a tentar algo que não fazia desde os tempos de colégio, quando se dedicava por algumas horas a ser autodidata no violão. Não tinha o instrumento ali com ele, mas tinha um caderno, um lápis, uma borracha e uma certa musicalidade bem escondida e inexplorada. Então ele compôs. No início teve dificuldades, precisou lutar contra os próprios pensamentos pessimistas, ou a preocupação sobre o que pensariam seus amigos se vissem aquilo. Mas, depois, percebeu que havia uma certa naturalidade na escrita, as palavras deixavam-se brotar, e, de repente, ele tinha algo a dizer. E disse. Não sabia exatamente para quem, porque provavelmente nunca seria capaz de expor.

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