O sol do outono carioca já iluminava
as varandas e quintais do bairro da Tijuca, enquanto as barracas da feirinha da
Praça Saens Peña eram preparadas para aquela sexta-feira que prometia ser de
grande movimento. Os carros, por sua vez, já ocupavam as ruas com suas buzinas
e monóxidos de carbono. E os pedestres apressados atravessavam fora da faixa,
com aquela agitação própria de quem está sempre atrasado, ou porque o metrô estava
com intervalos irregulares, ou porque o trânsito era um caos, ou por qualquer
outro inconveniente de cidade grande.
Dali a alguns quarteirões, em uma
área mais residencial, como de costume, estava João. Seu Zé da padaria, talvez
o único da vizinhança que soubesse o seu nome, lhe cumprimentava sempre pela
janela do estabelecimento: “Mais um dia, né, irmão? Vamos à batalha!”. E assim
seguia João, pelas ruas do bairro, com o seu uniforme laranja, suas botas,
luvas, vassoura, pá e coletor de lixo. Enquanto juntava
um montinho das muitas folhas de árvore que se espalhavam pelas ruas tijucanas,
cantava baixinho os sambas de que gostava, preocupando-se em interromper vez ou
outra a cantoria para desejar um bom dia aos passantes, gesto com frequência
não correspondido.
Os meses que já trabalhava por ali
e, é claro, seu olhar observador, lhe permitiram conhecer os hábitos dos moradores
mais metódicos – em geral, os mais idosos – que seguiam com muita disciplina as
suas rotinas. Seu Pereira (o gari não sabia o nome dos moradores, mas mentalmente
chamava-os pelo que aparentavam ter) já caminhava com o seu Poodle; Ademir, que
parecia ser advogado, já descera com o seu terno impecável e esperava o
motorista há três minutos, restavam ainda dois... Por que será que ele sempre descia
cinco minutos antes? Em instantes, a Dona Rita sairia pela portaria do prédio nº
83 para ir à padaria do Seu Zé tomar o seu café matinal e, logo em seguida, sairia
Júlio, o empresário.
Apesar de aparentemente monótono,
observar todas aquelas rotinas faziam o trabalho de João fluir melhor, era uma
maneira de se sentir parte daquela gente. Viu Júlio passar, cumprimentou-o e recebeu
um "bom dia". O rapaz estava de bom humor. “Boa, Júlio!”, pensou, imaginando o
que poderia tê-lo feito estar animado já tão cedo, logo ele, que parecia ser
daqueles que só abre a boca depois do meio-dia. Foi então que João se deu conta
da ausência de Dona Rita. Terminou aquele lado da calçada e resolveu mudar um
pouco a sua ordem habitual de varredura, para observar se a senhora apareceria.
Já havia se passado trinta
minutos... ele ficou preocupado. Sabia que poderia ser estranho se meter
naquela história e, na verdade, existiam muitas e muitas possibilidades. Ela
podia ter tido uma noite ruim de sono, ou ter viajado, ou finalmente resolvido
cozinhar alguma coisa... mas algo incomodava aquele homem. Chegou em frente ao
número 83, gritou o porteiro e acenou. O funcionário tinha uma expressão carregada
e, quando chegou perto, João entendeu o porquê... o cheiro da cachaça do dia
anterior exalava pelos seus poros. “É, oi... Desculpa o incômodo aí, irmão, mas
você sabe aquela senhora, deve ter uns 65 anos, cabelo castanho e liso... Ela sempre
vai tomar café ali na padaria...”. O porteiro entendeu se tratar de Dona Sandra,
não se preocupando em disfarçar sua antipatia pela mulher.
Foi necessário algum tempo de
conversa para convencer o homem a interfonar para o apartamento de Sandra e
mais ainda para que fosse lá checar se estava tudo bem, já que ninguém
atendera. Minutos depois chegava a ambulância e João assistia àquilo tudo
extremamente assustado. Apesar de ele mesmo ter provocado a situação, já se
imaginava constrangido e arrependido pelo tumulto ao supor que a senhora tinha
apenas ido dormir na casa de algum filho, ou qualquer coisa assim. Depois,
ficou sabendo que Sandra havia quebrado a perna, logo que se levantou naquele
dia, e que seus gritos de socorro só podiam ser ouvidos bem baixinho, por quem
passasse ali pelo corredor com alguma atenção.
Dia vai, dia vem, e o gari estava
por ali, pelas ruas daquele mesmo aglomerado residencial. Cumprimentou Seu Zé
da padaria, observou o passeio matutino do Poodle do Seu Pereira, verificou que
Ademir continuava adiantado... Agora seria Júlio, que já há dias retornara ao
seu mal humor habitual. Mas quem desceu foi Dona Rita, quer dizer, Sandra... João
lhe olhou com afeto:
- Bom dia, Dona Sandra! Que bom ver que se recuperou!
- Ah...oi... – pareceu
assustar-se a senhora, fechando a cara em seguida – Obrigada.
“Era só o que me faltava... Agora
eu devo algo a esse homem? Só porque dessa vez seu olhar bisbilhoteiro serviu
para alguma coisa, eu tenho que ficar lhe bajulando? Agora veja!” – resmungava internamente
a mulher, enquanto caminhava com dificuldade para a padaria.
João sabia o que estava
acontecendo, era um homem vivido. Não lhe agradava a situação, mas nunca
precisou do reconhecimento ou gratidão dessas pessoas que andam por aí se
achando melhores que as outras. Era um homem de valores e, mais do que isso,
conhecia o próprio valor. Continuou a varrer e em pouco tempo já cantava
novamente seus sambas. Terminou o serviço, enfrentou a linha 2 do metrô, chegou
em casa e encontrou os filhos brincando de esconde-esconde com a esposa que
também tinha chegado há pouco do trabalho. Apesar do cansaço, chegou participando
da brincadeira.
Na hora de colocar as crianças para dormir, repetia as palavras
de seu pai: “Meninos, o que os outros fazem é escolha deles. O que nós fazemos
com o que eles fazem, isso é escolha nossa...”. Observando seus rostinhos confusos, sabia que eles ainda não compreendiam, mas - infelizmente- um dia entenderiam.
Ah, seu João, isso é comum mesmo! Me vi diversas vezes nessa situação. No motorista do ônibus que não responde o bom dia e sempre falei isso “a minha parte eu tô fazendo, agora se ele não faz a dele não é comigo” quando alguém me perguntava o porque eu continuava dando bom dia. Sei que pra muitos isso muda o dia! E fui muito bem educada.
ResponderExcluirEu fiquei preocupado mas, só fraturou a perna. É muito metida a D. Sandra. Valeu pelo ensinamento.
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