Roberto acordou no horário de
sempre. O aroma natural de seu quarto – o cheiro do cigarro – nem lhe sobressaía
mais às narinas. Já havia sido alertado pelo médico, aquilo poderia matá-lo. O
que ninguém lhe dissera, entretanto, era como diabos lidar com aquela vida de
suburbano, com as contas para pagar, com o trânsito infernal do Rio de Janeiro,
com a péssima programação dos canais abertos de televisão. Mas, principalmente,
ninguém havia ensinado como lidar com a frustração de uma vida em constante
repetição. Era um homem amargurado por dentro, e disso, só sabia o cigarro.
Deu um beijo na esposa, Maria de
Lourdes, que prontamente lhe serviu o café. “Todo dia ela faz tudo sempre igual,
me sacode às seis horas da manhã, me sorri um sorriso pontual e
me beija com a boca de hortelã” – Chico lhe era inevitável naquele
momento. Roberto encarava a esposa com seus olhos apáticos, pensando no que
tinha acontecido ao longo do caminho para que a vida se tornasse aquele ciclo
de enormes vazios. Cheia de atividades e tão sem sentido.
Minutos depois já estava dentro
do táxi, torcendo para que o dia fosse, pelo menos, rentável. “Esses malditos
motoristas de aplicativo!”, pensava. Não demorou muito, porém, para que avistasse
o primeiro indicador esticado. Ficou surpreso por já conseguir passageiros ali
mesmo pelo bairro, geralmente precisava avançar em direção ao centro da Cidade
para ter os primeiros clientes. Mais surpreso ainda por ver uma menina tão
jovem recorrendo a seus serviços. Chegando mais perto, porém, reparou que atrás,
encostado no muro de uma casa, aguardava um senhor cego.
Entraram os dois no carro: “Vem,
vô!”, auxiliava a menina, com gentileza. Avisaram que iam para Botafogo,
prestigiar um concerto. Roberto estranhou esse tipo de evento tão cedo assim no
meio da semana. “Ê vida sempre igual...”, lamentou, se dando conta que já era sábado
e nem percebera. Observava pelo espelho o senhor com uma expressão leve e simpática,
carregando um sorriso sutil e satisfeito. De alguma forma, todo esse
contentamento incomodava o motorista.
De repente, o idoso soltou algumas
palavras, às quais Roberto não deu muita atenção, imaginando ser um diálogo entre
neta e avô. Pelo silêncio desconcertante que se seguiu, deduziu que a fala era
para ele.
- Desculpa, estava distraído,
senhor. O que disse?
- Sem problemas, meu filho. Perguntei
se você gosta de música.
- Ah... – Ele ficou desconcertado.
Por essa ele não esperava... – Eh... sim, mas não de todas.
- É? E de quais você gosta?
- Gosto de MPB e das antigas...
Não gosto dessas músicas de hoje em dia não. Não tem uma letra que preste.
O passageiro não tirava aquela
expressão sorridente do rosto... mesmo com a enorme habilidade do taxista em
tornar pesado qualquer assunto, característica clássica dos pessimistas. Roberto
estava acostumado com os diálogos sempre negativos com seus passageiros. Parecia
haver uma tendência natural de que as conversas entre desconhecidos acabassem
em concordâncias sobre o quão nojenta era a política, ou sobre o tremendo calor
de verões sempre mais quentes, ou sobre a falta de educação das pessoas no
trânsito - dos outros, é claro.
Viu, entretanto, a conversa se desenrolar
de uma maneira diferente. Não importa o quanto tentasse ir para os clássicos e
cômodos tópicos de conversa de taxista, ou, quem sabe, até para o silêncio
libertador, o idoso dava um jeito de voltar ao que parecia ser seu assunto preferido:
a música. Quando chegaram ao destino, Roberto agradeceu a preferência, como de
praxe, e desejou um bom dia. Sentiu então o aperto de uma mão firme em seu
ombro, o que lhe fez instintivamente se virar para observar o rosto do homem,
que lhe disse: “Te desejo uma vida que te faça cantarolar!”. Recorreu ao braço
estendido da neta e saiu.
Roberto atendeu outros passageiros
ao longo do dia, mas não pode se lembrar sequer de um único novo rosto que
tenha passado por aquele carro. Só repassava na sua mente o diálogo que tivera
com o homem. Se via capaz de criar as memórias que o senhor compartilhara com
ele: a sua euforia ao ouvir seu primeiro e tão desejado disco de João Gilberto
e Stan Getz, sua luta para aprender a tocar piano, sua emoção quando compôs seu
primeiro jazz... Aquilo lhe envolveu de uma forma... “Ah, mas um taxista não pode
se dar ao luxo de se divertir!”, lhe resistia a voz ranzinza de sua consciência
traumatizada. Voz que não pôde se sobrepor a uma nova que lhe acendia: a da
esperança.
Chegou em casa um pouco mais cedo,
o que fez Maria se assustar. Mas não mais que o que viria a seguir. Beijou e
acariciou a esposa como há anos não fazia. Percebendo o quanto a mulher já se
envolvia, arrancou suas roupas com carinho e firmeza. Tomaram banho juntos e
ali se amaram. Enquanto ela arrumava a mesa para o jantar, ele foi em busca do
velho rádio, encontrou fitas antigas que nem sabia por que guardava e – depois de
muitos e muitos anos – aquela casinha amarela, de um simples bairro do
subúrbio, ouvia novamente um pouco de música! No meio da sala, um casal dançava,
se divertindo com toda aquela estripulia.
No dia seguinte, Roberto acordou no
horário de sempre. Dessa vez, cantarolava.
Que delícia de texto.. nos mostra que pequenos atos no nosso dia podem sim mudar uma vida. Um sorriso, uma atenção, bom humor.. a vida pode ser mais leve! Amei!
ResponderExcluirSim, a diferença está nos detalhes!
ExcluirUma expressão do rosto faz muita diferença. O passageiro mostrou ser feliz
ResponderExcluirQue bom que Roberto pode encontrar com o senhor que transformou sua vida em algo mais leve e feliz. Que muitas pessoas possam ler essa história e voltem a cantarolar como Roberto =)
ResponderExcluirAmei, as vezes um simples gesto pode mudar a vida de alguém...
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