A caixa

em quinta-feira, 7 de maio de 2020

Fiquei dias encarando aquela caixa. Era grande, então achei que pudesse ser uma mesa, como aquela sobre a qual ele fica horas digitando em frente à tela mágica. Às vezes, quando passa muito tempo por lá, vou me esgueirando por entre suas pernas, acompanho cada um de seus movimentos e, com muita destreza, dou um pulo certeiro sobre o seu colo. Só quando olha para mim por tempo suficiente para que eu analise suas pupilas e verifique que não está hipnotizado, eu volto aos meus afazeres diários.

Qual não foi a minha surpresa quando, enfim, levantou-se de supetão em um destes dias em que eu fazia o meu diagnóstico, analisando a sua péssima expressão facial, e caminhou decididamente para aquele que era o meu quarto, a minha zona de exploração das mais diversas aventuras deste enigmático e provocante mundo. Zona esta, há dias, violada pela irreverência daquela caixa. “Finalmente, Humano, vai devolver o meu pedaço de terra, conquistado à base de muitas lambidas e miados suplicantes!” – pensei, enquanto observava sua afobação repentina. O que será que lhe passava pela cabeça?

Ele demorou longuíssimos minutos para cortar as fitas que enrolavam a caixa, processo que me deixou fortemente entediado. Não fosse o meu tempo de sobra – há de se considerar as minhas outras seis vidas – eu teria me ocupado com alguma outra atividade mais útil do meu felino dia. Entretanto, quando eu já quase me entregava aos doces gracejos do mundo da sonequinha, o Humano parece ter dominado a arte do desembrulho. Em questão de segundos estava lá a coisa, aquela máquina terrível e preta, que eu ainda não sabia o que era, mas podia, desde já, garantir: era maligna!

Um encaixe aqui, outro parafuso ali. Devo dizer que fiquei surpreso com suas habilidades, eu não lhe depositava grandes expectativas em questões manuais. Tenho meus motivos... Contrariando-me, entretanto, rapidamente a coisa estava ali, montada. Tive que esperar até o dia seguinte para ver o que ela fazia. Fui obrigado a despertar muito cedo naquela manhã - os insuportáveis pássaros mal tinham começado a cantar - e me vi constrangedoramente surpreendido por uma figura quase irreconhecível: “Que vestes ridículas são essas, Humano!?”. Subiu naquela coisa, apertou uns botões e foi então que confirmei minha hipótese: tratava-se de uma infame máquina do mal. Enquanto ele tentava se deslocar, ela o empurrava para o outro lado. Ele tentava andar mais rápido e mais rápido, mas não saía do lugar. Aquelas fortes cenas jamais poderão ser apagadas da minha pobre memória. Eu era apenas um expectador traumatizado.

 Quando enfim o Humano conseguiu se desvencilhar daquela coisa, ele transpirava – e fedia – mais do que nos dias mais quentes de nossa calorosa cidade. Fui até ele prestar-lhe minhas condolências, ao que fui correspondido com um breve abanar de mãos. Achei um tanto antipático, mas não quis criar caso, porque percebia seu abatimento. O que me surpreendeu foi presenciar a sua persistência ao longo dos dias seguintes em domar aquela fera. Com tanto lugar para se deslocar, era ali que ele queria caminhar? Humanos podem ser muito sem sentido às vezes.

Entretanto, pouco durou minha inquietação. O sol nasceu e se pôs mais algumas vezes e, de repente, ele parece ter se dado por vencido. Deve ter devolvido a máquina para o seu lugar maligno de origem, porque de repente ela não estava mais lá. Entretanto, na terra dos viventes não há um único dia de paz! Me encontro bem diante de um novo inebriante mistério... “Ó ser de indefinida forma, que grandes benefícios ou atrocidades trazes a este recinto e...”. Ah, quer saber, basta! Desta vez, decidi poupar-me. Primeiro foi aquele objeto todo curvilíneo e temperamental, que mal se podia encostar e já vinha emitindo seus sons; em seguida os vários acessórios barulhentos e trepidantes para fazer as rações do Humano; depois a máquina maligna que resiste ao deslocamento; e agora isso!

 A verdade é que a inconstância dos humanos cansa até as mentes mais dinâmicas...

4 comentários:

  1. Ahh, muito bom! Leve, intrigante, divertido! 😂🥰

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  2. Gostei! Não sabia que os felinos observavam assim.

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  3. Adorei a narrativa pela visão do gato, principalmente porque concordo que é realmente uma máquina maligna e super concordo quando ele diz que nossas inconstâncias cansam. Gato, elas cansam até a nós!

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  4. Muito legal!!!
    Parece que a gente consegue ver de fato tudo o que o gatinho vai descrevendo ao longo do texto. Muito fofo 😊

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