Phronesis - Parte 1

em sábado, 22 de agosto de 2020

Já estava há dez minutos parado dentro do carro estacionado. Encarava aquele muro tomado de trepadeiras e a porta dupla de madeira que lhe parecia convidativa e, ao mesmo tempo, assustadora. Retiro de Isolamento Social... lembrava-se da primeira vez que tinha lido um anúncio sobre aquilo e o quanto achara absurda - e até cômica – a ideia. Afinal, quem iria se isolar por vontade própria, para quê, com qual intuito? Como se não bastasse tudo o que as pessoas já haviam passado antes de encontrarem a vacina...


Agora ele se via ali, paralisado pelo duelo entre a voz que lhe gritava que aquilo tudo era uma grande besteira e a aparente incapacidade de retornar para casa. Sentia o peso de todos os últimos acontecimentos em suas costas. Apoiou os braços sobre o volante e deixou a cabeça pender para a frente, como que se permitindo desabar uma última vez, antes de tomar alguma atitude. Respirou fundo por um tempo, de olhos fechados, até que, em um súbito de coragem, passou a mão sobre as alças da mala que trazia no banco do carona. Saiu do carro com a postura ereta e caminhou até o portão.


Esperou poucos segundos até que alguém lhe atendesse após o toque da campainha. Era uma mulher jovem, de cabelos longos e ruivos e um vestido florido que passava dos joelhos.


- Bom dia! Seja bem-vindo ao nosso retiro. Pode deixar a sua mala aqui nesse cantinho, que levaremos para o seu quarto já, já. Só preciso que me diga seu nome para atualizar aqui a nossa lista de presença.


- Ah, sim... Cauã Lima Ferraz.


Quando a moça entregou a lista para que Cauã assinasse, ele reparou, pela numeração do lado esquerdo, que havia vinte inscritos, o que não lhe surpreendera, já que as turmas eram realmente limitadas, mas ainda havia cinco espaços vazios na área de assinaturas. “Devem ter desistido”, pensou sem grande espanto, afinal, por pouco, ele também seria um dos espaços em branco naquela lista.


Entrou na sala que, logo reparou, não tinha grandes atrativos. Era apenas um retângulo cinza com carteiras dispostas em fileiras e um quadro negro na parede, em frente a uma mesa grande – exatamente como em uma sala de escola. Caminhou se sentindo um pouco desconfortável com os olhares disfarçados que o acompanhavam, de forma que precisou se controlar para não apressar demais o passo até a carteira vaga que mirava. Era possível sentir a tensão no ar, um misto de ansiedade, vergonha e apreensão. O silêncio constrangedor era, vez ou outra, interrompido pelo barulho de um zíper se abrindo, alguma tosse seca ou um ranger de cadeiras. Todos pareceram aliviados ao notarem a chegada do homem de meia idade, pele morena, cabelos escuros, com uma calvície que parecia querer se instaurar. Seus óculos quadrados e pretos lhe davam um ar intelectual, mas a sua expressão demonstrava uma certa leveza e humildade.


- Bom dia, queridos participantes do 3º Retiro de Isolamento Social que realizamos aqui na Casa Phronesis. Eu me chamo Isaías Brum, sou o reitor deste retiro e vou acompanhá-los durante todos os quinze dias que passarão aqui conosco. Sou filósofo, teólogo e psicólogo e, com grande satisfação, dividirei com vocês muitas experiências desta minha trajetória pela busca do sentido da vida. Eu sempre me sinto tentado a pedir que se apresentem e contem suas histórias, como é de costume fazermos na maioria de nossos cursos. Mas, como sabem, o que procuramos aqui é experenciar um isolamento social semelhante, em alguns aspectos, ao que tivemos durante à pandemia da COVID-19 e, neste caso, não seria coerente estimularmos a interação entre os participantes. Acredito que devem estar minimamente curiosos quanto ao que viverão aqui, afinal, este tipo de trabalho ainda é pouco conhecido e causa uma certa estranheza aos que ouvem falar sobre nós. E também, propositalmente, nos ocupamos de passar apenas as informações mais práticas e essenciais em nosso site. Tudo isto é pensado de acordo com o objetivo deste curso.


O reitor fez uma pausa, preocupando-se em encontrar os olhares de cada um dos retirantes. Cauã se sentiu desconfortável quando os olhos castanhos e curiosos de Isaías lhe fitaram por segundos que pareceram décadas. Torceu para não ter corado, já que sua pele clara costumava denunciar seu constrangimento.


- Pois bem – continuou. – Vejo aqui pessoas de idades distintas e, certamente, histórias distintas. Isso quer dizer que vocês estão aqui por motivos diferentes. Talvez, para alguns, seja uma espécie de desafio pessoal; para muitos deve se tratar da saudade de algo que experimentaram durante o período de isolamento social; para outros, ainda, pode ser que tenham se arrependido da maneira como viveram o isolamento obrigatório e agora queiram a oportunidade de vivenciar este isolamento voluntário com uma postura diferente. Mas, independente dos motivos, todos vocês serão submetidos às mesmas práticas e...


Enquanto Isaías continuava com suas explicações, Cauã pensava que não se enquadrava em nenhum dos motivos que o reitor usara de exemplo. Ainda era viva a sensação de meses atrás, quando avistava o quintal no qual havia crescido, tão igual ao que sempre foi, exceto pela imagem do varal repleto de máscaras penduradas, dos mais diferentes estilos e cores, ritmadas por um vento suave, que parecia debochar de toda aquela tragédia. O rapaz ainda divagava em suas lembranças quando se assustou com a figura do reitor passando bem ao seu lado, colocando uma pasta grossa e pesada sobre sua carteira com um sorriso amigável. Olhou ao redor e viu que os demais já exploravam o que havia ali dentro. Sentiu-se então impelido a fazer o mesmo.


Caneta, lápis, borracha, pincéis, potes de tinta, fone de ouvido, sementes, incenso, caderno, pen drive... a pasta parecia ser a mistura mais aleatória que Cauã já tinha visto. Foi inevitável querer projetar para que serviriam todas aquelas coisas. Um folheto, no entanto, lhe chamou a atenção:


INSTRUÇÕES PARA A BOA VIVÊNCIA DO RETIRO DE ISOLAMENTO SOCIAL

1 - Evite o contato físico e/ou o diálogo com outros participantes.

2 – Você pode fazer uma chamada de vídeo por dia.

3 – O acesso às redes sociais é livre, mas não recomendado para os momentos de aula ou atividades do retiro.

4 – Os psicólogos da casa estarão à disposição, basta solicitar o serviço na recepção.

5 – Você pode deixar o retiro a qualquer momento.

6 – As refeições devem ser consumidas nos quartos e podem ser solicitadas pelo interfone para o horário de sua preferência, respeitando o horário de funcionamento da cozinha (das 8h às 20h).


- A partir de agora – instruiu Isaías, retornando ao seu lugar com as cinco pastas que sobraram em mãos - vocês estão liberados para conhecer os quartos e os demais espaços da casa que, logo perceberão, não são muitos. Temos um jardim no final do corredor à direita e uma varanda com uma bela vista no segundo andar. Fora isso, apenas os quartos e as salas de atividades, que vocês terão a oportunidade de conhecer uma por uma ao longo do retiro. Preocupem-se em se acomodar em seus quartos, solicitar o almoço e estejam novamente nesta sala às 14h30, com o caderno, caneta, lápis e borracha. Até breve!

__________

- Espero que tenham conseguido se adaptar bem às acomodações e desfrutar de um bom descanso pós-almoço, porque o dia de hoje é dedicado a uma conversa filosófica que exige atenção e envolvimento. Peço que façam as anotações daquilo que lhes chamar atenção de alguma forma, para que possam refletir melhor depois, ok? Ah, e por mais que tenham recebido instruções para evitarem a interação entre si, durante as aulas sintam-se livres para complementar os comentários uns dos outros, está bem? – Aguardou os acenos de concordância para prosseguir. – Pois bem... algum de vocês teve curiosidade de consultar o significado do nome desta casa?


Cauã observou uma mulher que aparentava ter uns sessenta anos levantar a mão direita. Usava uma calça larga marrom e uma blusa estampada. Os cabelos escuros e encaracolados lhe caíam bem.


- Ah, sim, você... Como se chama?


- Eleonora.


- Eleonora, o que você descobriu sobre a palavra Phronesis?


- Bem, eu vi que tem a ver com um pensamento de Aristóteles sobre a sabedoria prática, ou a prudência, algo que nos diferencia dos outros seres vivos.


- Exatamente, Eleonora. É isso mesmo. O que Aristóteles chama de phronesis corresponde à inteligência propriamente prática. Ela é capaz de ver o bem e o mal para os seres humanos em situações singulares. O exercício da phronesis é encontrar a atitude que convém numa dada circunstância. Veja bem, pode parecer confuso a princípio, mas vamos pensar na dimensão biológica do ser humano. Assim como a planta e o animal, nós também estamos sujeitos às necessidades vitais. No entanto, pelo fato do ser humano viver a partir da razão, isso introduz algo de novo na sua relação com o mundo, que é a relação com o tempo, com a possibilidade, com o bem, e essa é uma dimensão propriamente humana. Quando Aristóteles fala da phronesis, ele faz referência à justiça, considerando que a injustiça se relaciona com os extremos: o excesso e a falta. Desta forma, a ação justa deve evitar os extremos, caracterizando-se assim pelo equilíbrio. E a sabedoria prática, a phronesis, é capaz de discernir essa justa medida.


Cauã se esforçava para acompanhar o raciocínio do filósofo, lutando contra a própria resistência de se abrir a todos aqueles conceitos. Afinal, dentre tudo o que ele havia imaginado para aquela experiência de isolamento social, não havia cogitado ter aulas de filosofia. Que ele soubesse, ninguém que havia vivido a quarentena provocada pela pandemia tinha sido submetido a aulas sobre pensamentos aristotélicos. Aquilo não fazia sentido. Mas ainda era o primeiro dia e ele não queria ceder tão rapidamente à sua vontade de ir embora. Enquanto isso, Isaías continuava suas explanações.


- Então é por isso que se entende que a phronesis é o resultado desses três elementos próprios do ser humano: consciência correta, vontade correta e atitude correta. Movido pela sua consciência correta, o ser humano passa a ter uma vontade de agir conforme essa consciência e, por fim, age. Mas, como já falamos, quando Aristóteles faz referência às leis, ele destaca que não se trata apenas de considerar a melhor constituição, mas sim aquela que é praticável. Agora, e se pensarmos nessa realidade de pandemia que vivemos há poucos meses, o que podemos ver de comum com esse pensamento?


- Eu diria que muitos autônomos, por exemplo, precisaram redescobrir maneiras de trabalhar, de oferecer seus serviços. Precisaram ser criativos diante das possibilidades... – disse o homem à esquerda, que parecia extremamente empolgado com aquela aula.


- Excelente... André, né? – pelo visto o homem já havia se apresentado durante algum outro devaneio de Cauã. – E aí, então, saímos um pouco dessa relação de ética e política para pensar na felicidade. Se analisarmos a felicidade não como uma meta, mas como um caminho, podemos entender que a melhor forma de viver é aquela que é possível. E, sendo assim, a partir da phronesis, temos a capacidade de avaliar as melhores escolhas dentro de nossas possibilidades e ser felizes por meio e por causa delas.


Esse trecho Cauã resolveu anotar. Aquilo sim tinha muito a ver com o motivo que o havia levado até ali. Lembrava-se da sua última discussão acalorada com Carla:


- Você está sendo um tremendo de um egoísta – declarava a moça com a voz elevada.


- Egoísta? Eu? É você que quer ir para o outro lado do mundo por um ano. E os nossos planos, os nossos projetos? De repente, tudo virou só sobre você. Parece que daria no mesmo se eu tivesse morrido.


- Nunca mais fale um absurdo desses! – Respondeu Carla irritada. – Você não tem ideia de tudo o que eu passei. Não foi nada fácil lidar com você naquele hospital e depois tudo o que veio com a pandemia. Eu precisei de muita força e equilíbrio para não surtar. Se eu quero ir para esse curso é porque estudar, ter novos sonhos foi o que me deu motivação para continuar vivendo com algum entusiasmo. Você não entende.


- Não, eu não entendo. Porque num dia eu estava indo buscar o terno para o meu casamento e, quando eu acordei, o mundo todo estava enfiado dentro de casa com medo de morrer e a engenheira com a qual eu me casaria tinha, do nada, resolvido largar a profissão para investir numa carreira de escritora. Não, eu não entendo você, eu não entendo o mundo, eu não entendo o fato de as pessoas romantizarem uma tragédia e fazerem disso desculpa para atitudes irresponsáveis e inconsequentes! EU NÃO ENTENDO!

Um comentário:

top navigation



Topo