Phronesis - Parte 2

em sábado, 22 de agosto de 2020

 No segundo dia, às dez horas, já estavam todos novamente reunidos naquela mesma sala. Isaías mantinha o semblante simpático do dia anterior e começava as reflexões com algumas perguntas. “Como eu vejo o mundo?”, “Como me relaciono com as pessoas ao meu redor?”, “Sou uma pessoa aberta ou fechada ao novo?”... Todos os participantes iam anotando suas respostas. Vez ou outra, Cauã levantava a cabeça para reparar as reações dos outros retirantes e se eles também pareciam ter dificuldade em responder algumas das indagações.


- Baruch Spinoza foi um dos grandes filósofos do século XVII - prosseguia o reitor - dentro da chamada Filosofia Moderna. Ele defendia que o corpo é uma potência em ato, uma força de existir. Pensando desta forma, entendia as afecções como sendo o encontro pontual de um corpo com outro, o que quer dizer que um corpo pode afetar e ser afetado. Dizia ainda que nos relacionarmos com outras pessoas é o mesmo que ser afetados por elas, isto é, sofremos uma alteração, uma passagem: nossa potência aumenta ou diminui. Destas afecções, ocorrem os afetos, uma experiência vivida, uma transição. Estão conseguindo acompanhar?


A senhora de cabelos brancos, lisos e compridos, sentada bem à frente do professor, balançava a cabeça enfaticamente.


- Perfeitamente, reitor – dizia ela. – Todas as pessoas que passam pelas nossas vidas nos modificam de alguma forma.


- Sim... E Spinoza ainda se preocupou em dividir essas relações em dois grupos. O primeiro são as relações que aumentam a nossa capacidade de agir, o que ele chama de um afeto de alegria, ou um bom-encontro. Acontece quando uma afecção nos leva para uma potência maior de ser e agir no mundo; isso porque encontramos um corpo que combina com o nosso, que possui propriedades que se compõem com as nossas. Os bons- encontros são sempre momentos nos quais nos tornamos mais próximos do mundo e de nós mesmos, ampliando a nossa capacidade de afetar e ser afetado. Já o segundo grupo seria aquele relacionado aos afetos de tristeza, ou aos maus-encontros. Ocorrem quando uma afecção nos leva para uma condição menor de potência, ou seja, nossa força para existir e agir, afetar e ser afetado, diminui, passamos para uma perfeição menor. São todos os encontros que nos afastam da realidade e de nós mesmos, nos limitando, constrangendo, e nos fechando para o mundo.


Isaías demorou-se ainda mais alguns minutos nas explicações sobre os bons e maus encontros de Spinoza, mas Cauã já havia entendido perfeitamente. E, por isso, quando o reitor solicitou que listassem em seus cadernos pessoas que lhe representavam bons encontros, o rapaz já estava certo do primeiro nome que deveria rabiscar no papel: Carla.


Já havia se passado cinco anos desde o primeiro beijo dos dois, na festa em comemoração ao trigésimo aniversário de Marcos, amigo de infância de Cauã. Apesar do tempo, lembrava-se com perfeição do vestido amarelo-mostarda que usava a menina do cabelo curto e despojado. Mesmo sem conhecê-la, podia dizer que tinha personalidade, só pela maneira como gesticulava e como suas sobrancelhas se movimentavam naquele rosto expressivo. Precisou apenas de três cervejas para se sentir encorajado a puxar assunto. Mal sabia ele que aquela conversa lhe traria tanto.


Lembrava-se de ter se dado conta disso de maneira muito latente no dia do acidente, antes de tudo acontecer. Havia levantado cedo para malhar antes dos trabalho, porque dessa vez aproveitaria o horário de almoço para passar na loja de aluguel de roupas. Era um homem vaidoso e, por isso, não se preocupou em economizar... afinal, tratava-se do seu casamento.


Tomou um café reforçado, constatando ser o último que desfrutaria em seu apartamento no Grajaú. Ainda naquele dia iria para o hotel em Búzios onde se realizariam a cerimônia e a festa que vinham planejando há tantos meses. Lançou um olhar nostálgico pelo apartamento: pequeno, simples, mas Deus sabe o que aquelas paredes já haviam testemunhado! As noites de jogos e cerveja com os amigos, as madrugadas que ele passou em claro junto aos livros de Direito, as mulheres que já tinham dormido em sua cama... e, principalmente, todo o relacionamento com Carla. Pegou-se sorrindo ao lembrar da primeira vez em que a moça esteve por lá, tentando disfarçar - observadora e perfeccionista - o desconforto por conta da pintura descascada da parede e da desarmonia dos móveis da sala.


__________

Durante os dois dias de confinamento no quarto, Cauã pôde usufruir de tudo o que tinha consigo. Isaías havia explicado que após tantos estímulos e provocações filosóficas e, tendo em vista todas as obras de arte, filmes, músicas que eles já haviam contemplado, era hora de deixar tudo aquilo ser digerido e vivenciado no momento em que estivessem sozinhos. 


Nos dias anteriores, o jovem advogado já havia usado o notebook algumas vezes para utilizar o material que estava no pen drive, mas ainda não tinha parado para ler seus e-mails ou assistir alguma série. O reitor havia sido claro: eles eram completamente livres para fazer o que quisessem, contanto que não saíssem dos quartos. Então Cauã não se incomodou em colocar algumas das suas séries em dia. Entretanto, lá pelo quarto episódio, se sentia estranho, vazio. Pensou então em fazer uma chamada de vídeo para se distrair um pouco, mas teve dificuldade de pensar em alguém. Afinal, apesar de sentir muitas saudades de Carla, haviam combinado que só voltariam a se falar após o término do retiro. E não queria que seus pais ou amigos soubessem que ele estava ali, era difícil explicar. Se nem ele entendia direito... Pensou então em Marcos. Eles haviam conversado uma vez sobre a loucura que eram esses retiros que começavam a pipocar pela cidade. Apesar de concordarem ser algo muito estranho e até um pouco perturbador, Marcos acabou se mostrando intrigado.


- Fala, irmão – atendeu o rapaz, usando uma camisa social.


- Ih, cara, desculpa. Acabei perdendo totalmente a noção de tempo. Hoje é terça-feira, né? Você está no trabalho. Eu ligo outra hora.


- Não, pode falar. Só estamos eu e a secretária aqui hoje. O resto do pessoal está em home office. A empresa resolveu manter esse esquema porque os resultados acabaram sendo muito bons durante a quarentena.  E onde você está? Parece um hotel. Tá viajando?


- Não... Então... – Cauã tinha dificuldades de contar para o amigo. Tentou forçar um ar de casualidade. – Lembra de um papo que tivemos sobre aqueles retiros que estavam começando a acontecer depois da pandemia? Então, eu resolvi ver como era.


- Tu tá falando sério?


- Sim. - Cauã se arrependeu imediatamente de ter falado.


- Cara, depois me explica isso direito. Que loucura!


O silêncio se instaurou por segundos torturantes e então Cauã resolveu encerrar a conversa que mal tinha começado.


- Valeu, irmão. Eu vou precisar sair aqui. Só queria te contar essa história, nem eu estou acreditando direito. Não comenta com os caras não, tá? Deixa que eu quero contar depois.


- Beleza, vou comentar nada não. E, irmão, aproveita aí. Sei que você deve ter ido mais com um espírito de exploração e tal, mas você passou por tanta coisa... Acho que pode ser muito bom ter um tempo para pensar sobre isso... – a voz de Marcos pareceu embargar e ele logo se apressou em desligar. – Mas é isso, cara. Vou voltar aqui para o projeto que estou finalizando. A gente se fala!


Cauã desligou com os olhos marejados. Marcos definitivamente era um bom-encontro. Não era muito comum os amigos demonstrarem suas emoções, não era o tipo de assunto que os homens costumavam ter. Na verdade, nada daquilo que o rapaz estava vivendo nos últimos dias lhe era habitual. Quando estava fazendo a dinâmica da pintura, lembrou-se de um momento de sua infância em que ele e seu pai envernizavam um escudo de madeira que haviam feito. O menino usava uma máscara do Capitão América e o pai, uma do Batman. Lembrava-se da sensação de construir a sua própria ferramenta e de como era legal fazer aquilo junto do homem que ele tanto admirava. Mas ele nunca falou dessa lembrança. Era como se expor seus sentimentos o deixasse vulnerável, o violasse de certa forma.


Motivado por toda aquela nostalgia e retomando tantas falas recentes de Isaías sobre a força da arte na alma humana, Cauã viu-se motivado a tentar algo que não fazia desde os tempos de colégio, quando se dedicava por algumas horas a ser autodidata no violão. Não tinha o instrumento ali com ele, mas tinha um caderno, um lápis, uma borracha e uma certa musicalidade bem escondida e inexplorada. Então ele compôs. No início teve dificuldades, precisou lutar contra os próprios pensamentos pessimistas, ou a preocupação sobre o que pensariam seus amigos se vissem aquilo. Mas, depois, percebeu que havia uma certa naturalidade na escrita, as palavras deixavam-se brotar, e, de repente, ele tinha algo a dizer. E disse. Não sabia exatamente para quem, porque provavelmente nunca seria capaz de expor.

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