“Próxima estação: Vicente de Carvalho”,
ressoa pelos vagões a voz tão familiar, a quem já associo um rosto. É um horário
bom para pegar o metrô nessa direção, motivo pelo qual consigo me sentar. São
poucas estações até o meu destino, poucos minutos me separam do descanso após
um dia de trabalho. Passeio pelas postagens dos meus amigos e familiares, respondo
algumas mensagens, rio com textos engraçados, leio passagens bíblicas e então
reparo...
A moça que se sentava ao meu lado
havia partido, em seu lugar, está agora um homem. Tenho aquela sensação de
quando alguém me encara. Acho curiosa a maneira como o cérebro humano é capaz
de notar isso, não sendo incomuns as vezes em que meu olhar certificador encontrou
de fato um rosto tardiamente desviado, denunciando a ocorrência.
Aqui, nesse momento, não consigo
dar esse flagra. Seria demasiado constrangedor virar o rosto em 90 graus. Penso
nas possibilidades deste olhar, garantindo que nossas coxas não se encostem. Quando
percebo uma certa agitação no homem, um ajeita-a-gravata, endireita-a-coluna,
coça-a-barba, me soa urgente o sinal de alerta de minha consciência já programada
para fugir do perigo: “levanta, levanta!”. Seguro as alças de minha bolsa e é
tarde demais.
O homem começa a falar algo e
então me viro. Olhos verdes e vesgos em um rosto de alguém que beira os 60
anos. Uma calvície predominante em seus cabelos claros. Percebo que ele está bem
vestido, usando um terno e uma maleta, o que, entretanto, não ameniza em nada o
desconforto que seu rosto me causa. Ele pergunta algo sobre a passagem bíblica
que eu tinha lido. Noto então que mais do que me encarar, ele invadia a
minha privacidade – típico.
Entretanto, de todas as possibilidades
que eu havia previsto, nenhuma se enquadra no que está acontecendo. O homem
fala sem parar e eu me esforço para prestar atenção, não obstante a minha enorme
dificuldade de concentração frente à sua vesguice. Eu realmente não sei qual
dos olhos devo fitar, então, já passados alguns bons segundos (que me parecem
eternidades), opto pelo ponto entre as suas sobrancelhas. Noto que faz fortes e
belas reflexões sobre a vida, e Deus e nossas escolhas. Apesar de considerar
uma situação extremamente aleatória, deixo que fale à vontade, pois aquilo
parece realmente satisfazê-lo.
Percebo então que agora eu sou o
foco da fala. Ele me faz perguntas sobre minha vida, minha religião, meu casamento.
Parece um pouco frustrado por eu ser uma pessoa de fé e por estar feliz. Se
mostra disposto a revolucionar a minha história. Mas não se dá por vencido.
Faz uma série de questionamentos sobre as minhas escolhas até aqui, oferece
sugestões para possíveis situações tenebrosas da minha vida e fecha a fala com
uma proposta de mudança. Enfim, me pergunta com um olhar esperançoso se algo daquilo
me serve. Penso em uma maneira de não ofendê-lo e digo que preciso refletir
melhor para avaliar.
Para o meu alívio, ele sai nessa
estação, com o peito estufado e um sorriso de canto de boca. Para mim,
entretanto, ainda faltam duas paradas. Percebo então que nosso diálogo foi um
belo entretenimento para os outros passageiros. Posso ver no rosto da mulher à
frente a expressão de quem analisa uma variedade de cenários para o meu passado
profano e infeliz. Observo alguns olhares de solidariedade e também um ou outro
com aquela vergonha alheia estampada na face.
Levanto-me sentindo o peso das
expectativas. Espero a porta abrir e quando saio já não sou a mesma que entrou.
Sofro com uma história de vida que nem é minha, mas da qual fui convencida a
tomar posse.
Maldito poder de oratória!
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