Aqui embaixo - Capítulo 2 - O Falso Amor

em quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Enquanto deslizava o batom sobre os lábios, me dava conta do quanto gostava do que eu via no espelho. Havia pouco tempo, tinha completado meus 23 anos e eu me sentia, enfim, uma mulher bonita. Não que eu me considerasse uma pessoa completamente insegura ou qualquer coisa assim, mas a adolescência pode ser bem cruel com algumas pessoas, não é? Todas aquelas espinhas e estrias em um corpo magro e comprido, que cresceu rápido demais. Ainda tem aquele andar desengonçado que dá a impressão que algo descompassou de repente. Eu era uma dessas adolescentes, mas, pelo menos, eu tinha um namorado. Porém, quando eu e Caio terminamos, eu precisei aprender a gostar de mim sem que alguém estivesse ao meu lado repetindo que eu era linda.


Passei alguns anos vivendo essa descoberta a respeito da mulher que eu era. Dediquei-me a viver coisas que eu gostava, amava ou achava que precisava. Consegui passar no vestibular para a faculdade de Letras, passei a dar aulas de português e redação em um pré-vestibular comunitário, tirei a carteira de motorista e abri uma loja de venda de roupas online junto com a Lara, minha amiga de anos.


Já tinha um tempo que eu vinha trabalhando no projeto pessoal de me tornar uma mulher da qual eu pudesse me orgulhar. Acho que eu já poderia dizer que eu me achava interessante, mas bonita mesmo, era uma coisa bem recente. Não era muito claro para mim o exato momento em que parei de achar a preocupação com a estética uma futilidade e comecei a gostar tanto disso que sugeri à Lara que a gente abrisse a loja. Fiz alguns cursos, procurei parceiros e, quando me dei conta, as coisas estavam avançando num ritmo razoável. Talvez toda aquela vivência com a moda tenha despertado uma vaidade em mim que, ao contrário do que eu imaginava, não me tornou superficial, mas me trouxe autoconfiança e tranquilidade para me expor como eu bem entendesse, me vestir como me sentisse à vontade, usar o cabelo que combinasse comigo. Por isso, quando eu encarava o reflexo naquele espelho, com o batom na mão, eu via uma mulher que não era só interessante e não era só bonita, era os dois.


Saí revestida de autoconfiança. Liguei para a Júlia no caminho, que me disse que os outros amigos da faculdade já tinham chegado, só faltava eu. A gente ia se encontrar em um barzinho na Lapa, onde acontecia uma roda de samba maravilhosa. Quando cheguei, meus amigos já tinham bebido bastante, o que fez a recepção ser bem calorosa. Túlio já chegou me puxando para sambar e eu, embebida da minha recém-conquistada autoconfiança, não deixei a desejar na performance. A noite fluiu com muita naturalidade e leveza. Eu me sentia bem, feliz, realizada. Tinha ótimos amigos, cursava algo que amava, estava ganhando o suficiente para me manter com alguns luxos, tinha uma família incrível, podia ajudar pessoas a conquistarem uma vaga na faculdade... Enfim, eu me sentia plena, feliz, interessante, bonita. Não sentia falta de um amor, não agora. Não que eu não quisesse, mas não era necessário para que eu me sentisse bem. Por isso, tantas vezes quando repasso essa história na minha cabeça eu me pergunto o porquê de eu me sentir tão envolvida com o cara que me abordou naquela noite. Tudo poderia ter sido diferente se eu simplesmente não estivesse ali no mesmo dia e hora que ele. Mas eu estava.


No meio de uma conversa animadíssima sobre algo que não me lembro, senti uma mão pairar sobre o meu ombro.


- “Oi, licença, boa noite, posso falar com você?”


Nem sei dizer exatamente sobre o que tanto falamos, mas passei o resto da noite, conversando, rindo e achando aquele homem tão interessante e cativante! Ele não era pedante como um monte de caras que costumavam puxar papo nas baladas, mas também não parecia inseguro. Ele realmente prestava atenção no que falava, era gentil e carinhoso. Eu acabei bebendo demais e ele me levou para casa, sem nem tentar nada. Só pegou o número do meu telefone e me disse para descansar. No dia seguinte eu acordei com uma ressaca braba, acompanhada de alguns lapsos de memória e muita dor de cabeça. Mas eu me lembrava daquele rosto charmoso, do sorriso cativante e da sensação de me sentir atraída, envolvida e encantada. Quando eu já estava me conformando de que aquela era só mais uma boa história para guardar e relembrar com uma nostalgia gostosa - já que provavelmente eu tinha assustado o garoto com o meu exagero alcoólico justo quando nos conhecemos - fui surpreendida por uma ligação.


- Alô! Oi, é o Bruno. Desculpa se eu te acordei, queria saber como você está.


E foi assim que tudo começou. Ele dizia tudo o que eu gostava de ouvir. Realmente eu estava nas nuvens, tão perdidamente apaixonada que eu não conseguia imaginar passar muito tempo sem pelo menos trocar mensagens com ele. Vivia para lá e para cá rindo para o celular, distraída, abobalhada. Vivia algo engraçado e ia logo contar para ele e me derretia quando ele dizia que tinha lembrado de mim ouvindo alguma música melosa. Passei semanas revezando entre estar com ele em algum lugar novo, e me surpreender recebendo presentes, flores, chocolates seja em casa, no trabalho, até na academia. Mas o que foi mais incrível ainda foi chegar em casa dois meses depois do dia que nos conhecemos e mal reconhecer o meu quarto, cheio de balões em formato de coração, rosas pelo chão e um escrito fluorescente na parede: “Namora comigo?”. Me ajoelhei junto ao Bruno, que segurava uma caixinha com duas alianças, achando maravilhosos aqueles anéis de compromisso tão clichês. Ali nos beijamos com muito afeto. Eu estava agradecida por viver um amor tão profundo, por me sentir tão especial, tão desejada, tão bem cuidada. Permaneci de olhos fechados por um tempo, mas não pude conter uma lágrima teimosa que descia livre e serelepe, celebrando essa alegria que de mim extravasava. Nos braços dele eu me sentia completa, segura, protegida.


Passamos dias maravilhosos, viajando, curtindo, comendo em restaurantes incríveis. Ele me mimava e eu não me incomodava de estar em qualquer lugar que fosse, contanto que ele estivesse junto. Por isso, não estranhei quando ele disse que não queria que eu fosse no aniversário do Túlio. Entendi que estava cansado e que só queria ficar ali aconchegado comigo. Em pouco tempo estávamos morando juntos, apesar de meus pais acharem rápido demais. O Bruno conversou comigo e me explicou que a nossa criação tinha sido muito diferente e que eu era super protegida. Ele me aconselhou a enfrentar meus pais de vez em quando, afinal eu já era adulta e não é como se eu estivesse fugindo de casa... eu estava indo morar com o homem da minha vida. Era só uma questão de tempo mesmo, então por que adiar as coisas?


Foi uma delícia escolher os móveis, pintar a casa juntos, dormir e acordar ao lado dele. A gente gostava tanto de ter o outro por perto que o Bruno até me pediu para parar de dar as aulas no pré-vestibular comunitário.  Eu não queria deixar de ajudar aqueles meninos e gostava muito de lecionar, mas ele pareceu bem magoado quando eu comecei a falar sobre isso, então não quis ser egoísta. Eu entendia que se a gente foi morar junto para estar mais tempo um com o outro, eu precisava efetivamente estar ali, disponível.


Eu não tinha certeza se era maluquice da minha cabeça e não queria parecer paranóica, mas comecei a notar que o Bruno estava chegando cada vez mais tarde do trabalho e, quando estava em casa, passava muito tempo mexendo no celular. Uma vez eu perguntei se estava acontecendo alguma coisa e ele disse que só estava com muito trabalho e que era para eu não surtar. Mas em um fim de noite, acabei vendo uma mensagem piscando no celular dele com uma mensagem muito sugestiva.


- Quem é Suellen?


- Suellen? É uma amiga do trabalho? Por quê? – com o maior ar de casualidade possível.


- Eu estava sentada ao lado do seu celular e, por acaso, o celular acendeu e eu vi uma mensagem dela... Você quer me contar alguma coisa?


- Eu? Contar o quê? Tá maluca?


- “Chegou bem, gato?”... Parece que você tem algo para me contar!


Aquela discussão demorou horas e não sei exatamente como eu terminei pedindo desculpas pela minha insegurança e por desconfiar dele. Tentei não dar atenção para a força com que ele segurou o meu braço e o medo que eu senti quando ele começou a gritar comigo. Devia ser coisa da minha cabeça mesmo, eu tinha que parar de ser tão possessiva. Como eu podia desconfiar do homem que fazia tanto por mim?


Nossa história teve muitos outros capítulos, rodeados de passeios, presentes, surpresas maravilhosas, mas também discussões, crises de ciúmes, empurrões e muitas ofensas. Quando eu estava ali, no meio daquilo que se transformara a minha vida, eu não percebia o quanto as coisas tinham mudado. Eu mal saía de casa e estava magra, muito magra. Me sentia muito frágil e com muita sorte por ter o Bruno comigo. As coisas não iam bem com a loja e estava difícil arranjar emprego como professora, já que eu tinha pouquíssima experiência. Eu ficava contando as horas esperando o Bruno chegar, o que às vezes demorava muito. Meu aniversário de 27 anos ia se aproximando e já seria o terceiro ano que eu não comemoraria. Quando o Bruno me viu chorando, ele se explicou:


- Eu nunca te impedi de comemorar seu aniversário, Bia. Eu só digo que acho bobeira, a gente poderia comer alguma coisa aqui em casa e pronto, mas se é tão importante para você, tudo bem, amor.


Marquei então um barzinho com os amigos no final de semana seguinte e fiquei muito feliz de rever tantas pessoas queridas. Conversei, dancei, estava leve como há muito tempo não me sentia. De vez em quando eu olhava para o Bruno meio receosa, mas ele estava quase sempre sorrindo, então isso me deixou relaxada. Cantamos os parabéns e umas 2 horas da manhã fomos para casa. Quando eu já estava indo abraçá-lo toda radiante, ele fechou a cara. Disse que eu estava ridícula, bêbada, que eu não tinha aprendido nada. Falou que eu estava me exibindo com a barriga de fora e que passei a noite inteira dando mole para os caras que estavam comigo.


- É por isso que eu não gosto que a gente saia. Você não pode ver ninguém te dando confiança que já fica se achando linda, maravilhosa. Se olha no espelho, Beatriz. Você não se cuida e depois reclama de eu olhar outras mulheres. Eu não posso olhar mulher nenhuma, né? Mas você pode ficar de papinho com o primeiro que aparece.


Quando o segui até o banheiro para me defender daqueles absurdos que ele estava falando, ele me deu um soco no olho esquerdo.


- Eu vou sair daqui para não fazer merda! – chutou a parede e depois eu só ouvi o barulho da porta batendo com força.


Caída sobre o chão frio do banheiro, eu observava as gotas de sangue colorindo, uma a uma, o branco do azulejo. Cada uma me arrancando um pedaço. Fraca, abatida, desesperançosa, violada, moída, sozinha. Sentia-me sem forma, um bocado de farelos do alguém que eu já fora. O vermelho me gritava aos olhos, como se toda aquela cor fosse um último pedido de ajuda do que ainda restava de mim, um apelo da alma expelido pelo corpo. “Chega”, eu sussurrava. “Chega!”, repetia tentando me convencer. “Chega, CHEGA, CHEEEGAAA!” Gritava eu, apoiando as mãos no chão para me levantar. Encarei o espelho, aquele para o qual fazia tanto tempo que eu não olhava. Lembrei-me da noite em que conheci Bruno e como naquele dia o meu reflexo era tão diferente. Eu era apenas uma sombra daquela mulher tão dona de si. CHEGA!


Lavei rapidamente a ferida que se abriu em meu supercílio, improvisei um curativo e saí enfiando em uma mochila tudo aquilo que me parecia mais essencial. Cheguei na casa dos meus pais envergonhada por ter apanhado, pensando em como explicar o que tinha acontecido. Não sabia se eles iriam me receber depois de tanto tempo que eu passei sendo tão fria e distante, faltando aos almoços de domingo e até alguns aniversários. Por isso, eu passei algum tempo sentada em frente à porta, respirando fundo, me preparando para ouvir o que eu sabia que doeria, mas que era verdade: eles tinham me avisado que era cedo quando saí de casa, tinham me alertado sobre o comportamento dele. Mas eu era incapaz de ver. Quando, enfim, tomei coragem de tocar a campainha, meu pai abriu a porta com um sorriso no rosto, que logo se transformou em um olhar preocupado e um abraço:


-Minha menina! Entra, nós vamos cuidar de você...


Bruno me ligou inúmeras vezes, foi atrás de mim na faculdade, na academia, até ficou me esperando em frente a casa dos meus pais uma vez, mas eles ameaçaram chamar a polícia. Nem sei quantas vezes ele disse que se mataria. Mandava mensagens e mensagens tentando me convencer de que ele iria mudar, que ele só tinha me batido porque eu tinha deixado ele com ciúmes, ou porque eu insistia em fazer coisas que ele não gostava, mas que ele não faria mais isso. Que ele me amava e que não estava pensando quando me machucou. Eu lia tudo, ouvia o que ele tinha para dizer e parte de mim queria muito acreditar, mas eu estava determinada a não mais acreditar em um amor que eu queria que fosse verdade, mas não era. E o dia em que eu resolvi não atender mais as ligações dele, ou ler suas mensagens, foi o dia em que escrevi publicamente este desabafo:

 

Você diz que me ama, mas que ama demais.

Eu sou delicada, doce, porém impulsiva.

Sou cabeça fraca, me influencio sem perceber

E só por isso você não me divide com ninguém

 

Você diz que me admira, mas o tempo todo me critica.

Me faz desistir de projetos, não me incentiva.

Diz que que quer me proteger.

Você faz isso para o meu bem.

 

 Quando você me trai, a culpa é do meu desleixo,

Ou é coisa da minha cabeça explosiva.

Diz que ninguém vai me amar como você,

Jamais encontrarei outro alguém

 

Para que comemorar aniversário?

Ir à minha formatura, para quê?

Tudo isso é uma grande besteira,

Se eu puder estar ao lado do meu bem.

 

 Mas agora sou eu que tenho algo a dizer:

 

Quem ama não anula,

Não humilha, não descrê.

Quem ama não macula,

Não ofende o bem querer.

Quem ama escuta,

Voa e deixa voar.

Quem ama não chuta,

Não bate, não faz sangrar.

Amor não é para doer.

Amor é para doar.

Amor não desfigura

Nem corpo, nem coração.

Quem ama estende a mão,

Tira o outro do chão,

Perdoa e pede perdão.

Isso que você faz não é amor.

Isso não é nem paixão.

Isso é chantagem, covardia, rancor,

É ser para o outro destruição.

Cada pedaço que você triturou

Quer vomitar na sua direção.

Desintoxicar de todo esse horror

Regenerar-se em autocompaixão.

 

                                                            Eu me amo, apesar de você.                    

7 comentários:

  1. Uau! Reflexivo, profundo, realidade triste que sabemos que existe e precisa ser denunciada. Continue prima, amada! Não deixe de escrever.

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  2. "Cada pedaço que vc triturou quer vomitar em sua direção..."
    Como a poesia pode ser marcante e dizer tudo em tão poucas palavras!
    Obrigada!
    Quero mais!!!

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  3. Pesado na medida certa. Adorei. Aguardando o próximo capítulo!

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  4. Texto intenso,bem elaborado. Uma bela história. Que todos devemos tirar lições. Destaco: Devemos nos amar

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  5. Um excelente texto que exemplifica muito bem o que é um relacionamento abusivo, normalmente tudo começa com mil pétalas de rosa e depois termina com mil espinhos. Que mais mulheres e homens não se permitam a ser tratados como ela foi... e consigam gritar "Chegaaaaaa"

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  6. Triste realidade e que vc abordou com muita sensibilidade! Achei incrível o fato de você ter colocado exatamente como acontece na maioria das vezes, aos poucos a pessoa vai piorando e piorando no relacionamento abusivo.. a gente tem q se manter sempre alerta, saber do nosso valor, o que não devemos aceitar de jeito nenhum e principalmente ouvir nossos amigos de verdade e familiares q querem nosso bem quando estiverem falando sobre nossos relacionamentos (e que tenham razao). Tema importantissimo! Obrigada pela sua escrita miga!!!

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  7. Que história, que escolha de palavras, nem imagino o que é viver isso, mas sua sensibilidade me fez entrar na história com intensidade. Que Deus abençoe seu dom e sua empatia, de colocar em palavras, tão bem escritas, a dor do outro!

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