Enquanto deslizava o batom sobre os lábios, me dava conta do quanto gostava do que eu via no espelho. Havia pouco tempo, tinha completado meus 23 anos e eu me sentia, enfim, uma mulher bonita. Não que eu me considerasse uma pessoa completamente insegura ou qualquer coisa assim, mas a adolescência pode ser bem cruel com algumas pessoas, não é? Todas aquelas espinhas e estrias em um corpo magro e comprido, que cresceu rápido demais. Ainda tem aquele andar desengonçado que dá a impressão que algo descompassou de repente. Eu era uma dessas adolescentes, mas, pelo menos, eu tinha um namorado. Porém, quando eu e Caio terminamos, eu precisei aprender a gostar de mim sem que alguém estivesse ao meu lado repetindo que eu era linda.
Passei alguns anos vivendo essa
descoberta a respeito da mulher que eu era. Dediquei-me a viver coisas que eu
gostava, amava ou achava que precisava. Consegui passar no vestibular para a
faculdade de Letras, passei a dar aulas de português e redação em um pré-vestibular
comunitário, tirei a carteira de motorista e abri uma loja de venda de roupas
online junto com a Lara, minha amiga de anos.
Já tinha um tempo que eu vinha
trabalhando no projeto pessoal de me tornar uma mulher da qual eu pudesse me
orgulhar. Acho que eu já poderia dizer que eu me achava interessante, mas
bonita mesmo, era uma coisa bem recente. Não era muito claro para mim o exato
momento em que parei de achar a preocupação com a estética uma futilidade e
comecei a gostar tanto disso que sugeri à Lara que a gente abrisse a loja. Fiz
alguns cursos, procurei parceiros e, quando me dei conta, as coisas estavam
avançando num ritmo razoável. Talvez toda aquela vivência com a moda tenha
despertado uma vaidade em mim que, ao contrário do que eu imaginava, não me
tornou superficial, mas me trouxe autoconfiança e tranquilidade para me expor
como eu bem entendesse, me vestir como me sentisse à vontade, usar o cabelo que
combinasse comigo. Por isso, quando eu encarava o reflexo naquele espelho, com
o batom na mão, eu via uma mulher que não era só interessante e não era só
bonita, era os dois.
Saí revestida de autoconfiança.
Liguei para a Júlia no caminho, que me disse que os outros amigos da faculdade
já tinham chegado, só faltava eu. A gente ia se encontrar em um barzinho na
Lapa, onde acontecia uma roda de samba maravilhosa. Quando cheguei, meus amigos
já tinham bebido bastante, o que fez a recepção ser bem calorosa. Túlio já
chegou me puxando para sambar e eu, embebida da minha recém-conquistada
autoconfiança, não deixei a desejar na performance. A noite fluiu com muita
naturalidade e leveza. Eu me sentia bem, feliz, realizada. Tinha ótimos amigos,
cursava algo que amava, estava ganhando o suficiente para me manter com alguns
luxos, tinha uma família incrível, podia ajudar pessoas a conquistarem uma vaga
na faculdade... Enfim, eu me sentia plena, feliz, interessante, bonita. Não
sentia falta de um amor, não agora. Não que eu não quisesse, mas não era
necessário para que eu me sentisse bem. Por isso, tantas vezes quando repasso
essa história na minha cabeça eu me pergunto o porquê de eu me sentir tão
envolvida com o cara que me abordou naquela noite. Tudo poderia ter sido
diferente se eu simplesmente não estivesse ali no mesmo dia e hora que ele. Mas
eu estava.
No meio de uma conversa
animadíssima sobre algo que não me lembro, senti uma mão pairar sobre o meu
ombro.
- “Oi, licença, boa noite, posso
falar com você?”
Nem sei dizer exatamente sobre o
que tanto falamos, mas passei o resto da noite, conversando, rindo e achando
aquele homem tão interessante e cativante! Ele não era pedante como um monte de
caras que costumavam puxar papo nas baladas, mas também não parecia inseguro.
Ele realmente prestava atenção no que falava, era gentil e carinhoso. Eu acabei
bebendo demais e ele me levou para casa, sem nem tentar nada. Só pegou o número
do meu telefone e me disse para descansar. No dia seguinte eu acordei com uma
ressaca braba, acompanhada de alguns lapsos de memória e muita dor de cabeça.
Mas eu me lembrava daquele rosto charmoso, do sorriso cativante e da sensação
de me sentir atraída, envolvida e encantada. Quando eu já estava me conformando
de que aquela era só mais uma boa história para guardar e relembrar com uma
nostalgia gostosa - já que provavelmente eu tinha assustado o garoto com o meu
exagero alcoólico justo quando nos conhecemos - fui surpreendida por uma
ligação.
- Alô! Oi, é o Bruno. Desculpa se
eu te acordei, queria saber como você está.
E foi assim que tudo começou. Ele
dizia tudo o que eu gostava de ouvir. Realmente eu estava nas nuvens, tão
perdidamente apaixonada que eu não conseguia imaginar passar muito tempo sem
pelo menos trocar mensagens com ele. Vivia para lá e para cá rindo para o
celular, distraída, abobalhada. Vivia algo engraçado e ia logo contar para ele
e me derretia quando ele dizia que tinha lembrado de mim ouvindo alguma música
melosa. Passei semanas revezando entre estar com ele em algum lugar novo, e me
surpreender recebendo presentes, flores, chocolates seja em casa, no trabalho,
até na academia. Mas o que foi mais incrível ainda foi chegar em casa dois
meses depois do dia que nos conhecemos e mal reconhecer o meu quarto, cheio de
balões em formato de coração, rosas pelo chão e um escrito fluorescente na
parede: “Namora comigo?”. Me ajoelhei junto ao Bruno, que segurava uma caixinha
com duas alianças, achando maravilhosos aqueles anéis de compromisso tão
clichês. Ali nos beijamos com muito afeto. Eu estava agradecida por viver um
amor tão profundo, por me sentir tão especial, tão desejada, tão bem cuidada. Permaneci
de olhos fechados por um tempo, mas não pude conter uma lágrima teimosa que
descia livre e serelepe, celebrando essa alegria que de mim extravasava. Nos
braços dele eu me sentia completa, segura, protegida.
Passamos dias maravilhosos,
viajando, curtindo, comendo em restaurantes incríveis. Ele me mimava e eu não
me incomodava de estar em qualquer lugar que fosse, contanto que ele estivesse
junto. Por isso, não estranhei quando ele disse que não queria que eu fosse no
aniversário do Túlio. Entendi que estava cansado e que só queria ficar ali
aconchegado comigo. Em pouco tempo estávamos morando juntos, apesar de meus
pais acharem rápido demais. O Bruno conversou comigo e me explicou que a nossa
criação tinha sido muito diferente e que eu era super protegida. Ele me aconselhou
a enfrentar meus pais de vez em quando, afinal eu já era adulta e não é como se
eu estivesse fugindo de casa... eu estava indo morar com o homem da minha vida.
Era só uma questão de tempo mesmo, então por que adiar as coisas?
Foi uma delícia escolher os
móveis, pintar a casa juntos, dormir e acordar ao lado dele. A gente gostava
tanto de ter o outro por perto que o Bruno até me pediu para parar de dar as
aulas no pré-vestibular comunitário. Eu
não queria deixar de ajudar aqueles meninos e gostava muito de lecionar, mas ele
pareceu bem magoado quando eu comecei a falar sobre isso, então não quis ser
egoísta. Eu entendia que se a gente foi morar junto para estar mais tempo um
com o outro, eu precisava efetivamente estar ali, disponível.
Eu não tinha certeza se era maluquice da minha cabeça e não queria parecer paranóica, mas comecei a notar que o Bruno estava chegando cada vez mais tarde do trabalho e, quando estava em casa, passava muito tempo mexendo no celular. Uma vez eu perguntei se estava acontecendo alguma coisa e ele disse que só estava com muito trabalho e que era para eu não surtar. Mas em um fim de noite, acabei vendo uma mensagem piscando no celular dele com uma mensagem muito sugestiva.
- Quem é Suellen?
- Suellen? É uma amiga do trabalho?
Por quê? – com o maior ar de casualidade possível.
- Eu estava sentada ao lado do
seu celular e, por acaso, o celular acendeu e eu vi uma mensagem dela... Você
quer me contar alguma coisa?
- Eu? Contar o quê? Tá maluca?
- “Chegou bem, gato?”... Parece
que você tem algo para me contar!
Aquela discussão demorou horas e não
sei exatamente como eu terminei pedindo desculpas pela minha insegurança e por
desconfiar dele. Tentei não dar atenção para a força com que ele segurou o meu
braço e o medo que eu senti quando ele começou a gritar comigo. Devia ser coisa
da minha cabeça mesmo, eu tinha que parar de ser tão possessiva. Como eu podia
desconfiar do homem que fazia tanto por mim?
Nossa história teve muitos outros
capítulos, rodeados de passeios, presentes, surpresas maravilhosas, mas também
discussões, crises de ciúmes, empurrões e muitas ofensas. Quando eu estava ali,
no meio daquilo que se transformara a minha vida, eu não percebia o quanto as
coisas tinham mudado. Eu mal saía de casa e estava magra, muito magra. Me
sentia muito frágil e com muita sorte por ter o Bruno comigo. As coisas não iam
bem com a loja e estava difícil arranjar emprego como professora, já que eu tinha
pouquíssima experiência. Eu ficava contando as horas esperando o Bruno chegar,
o que às vezes demorava muito. Meu aniversário de 27 anos ia se aproximando e
já seria o terceiro ano que eu não comemoraria. Quando o Bruno me viu chorando,
ele se explicou:
- Eu nunca te impedi de comemorar
seu aniversário, Bia. Eu só digo que acho bobeira, a gente poderia comer alguma
coisa aqui em casa e pronto, mas se é tão importante para você, tudo bem, amor.
Marquei então um barzinho com os
amigos no final de semana seguinte e fiquei muito feliz de rever tantas pessoas
queridas. Conversei, dancei, estava leve como há muito tempo não me sentia. De
vez em quando eu olhava para o Bruno meio receosa, mas ele estava quase sempre
sorrindo, então isso me deixou relaxada. Cantamos os parabéns e umas 2 horas da
manhã fomos para casa. Quando eu já estava indo abraçá-lo toda radiante, ele
fechou a cara. Disse que eu estava ridícula, bêbada, que eu não tinha aprendido
nada. Falou que eu estava me exibindo com a barriga de fora e que passei a
noite inteira dando mole para os caras que estavam comigo.
- É por isso que eu não gosto que
a gente saia. Você não pode ver ninguém te dando confiança que já fica se
achando linda, maravilhosa. Se olha no espelho, Beatriz. Você não se cuida e
depois reclama de eu olhar outras mulheres. Eu não posso olhar mulher nenhuma,
né? Mas você pode ficar de papinho com o primeiro que aparece.
Quando o segui até o banheiro para
me defender daqueles absurdos que ele estava falando, ele me deu um soco no
olho esquerdo.
- Eu vou sair daqui para não
fazer merda! – chutou a parede e depois eu só ouvi o barulho da porta batendo
com força.
Caída sobre o chão frio do banheiro, eu observava as gotas de sangue colorindo, uma a uma, o branco do azulejo. Cada uma me arrancando um pedaço. Fraca, abatida, desesperançosa, violada, moída, sozinha. Sentia-me sem forma, um bocado de farelos do alguém que eu já fora. O vermelho me gritava aos olhos, como se toda aquela cor fosse um último pedido de ajuda do que ainda restava de mim, um apelo da alma expelido pelo corpo. “Chega”, eu sussurrava. “Chega!”, repetia tentando me convencer. “Chega, CHEGA, CHEEEGAAA!” Gritava eu, apoiando as mãos no chão para me levantar. Encarei o espelho, aquele para o qual fazia tanto tempo que eu não olhava. Lembrei-me da noite em que conheci Bruno e como naquele dia o meu reflexo era tão diferente. Eu era apenas uma sombra daquela mulher tão dona de si. CHEGA!
Lavei rapidamente a ferida que se
abriu em meu supercílio, improvisei um curativo e saí enfiando em uma mochila
tudo aquilo que me parecia mais essencial. Cheguei na casa dos meus pais
envergonhada por ter apanhado, pensando em como explicar o que tinha
acontecido. Não sabia se eles iriam me receber depois de tanto tempo que eu
passei sendo tão fria e distante, faltando aos almoços de domingo e até alguns
aniversários. Por isso, eu passei algum tempo sentada em frente à porta, respirando
fundo, me preparando para ouvir o que eu sabia que doeria, mas que era verdade:
eles tinham me avisado que era cedo quando saí de casa, tinham me alertado
sobre o comportamento dele. Mas eu era incapaz de ver. Quando, enfim, tomei
coragem de tocar a campainha, meu pai abriu a porta com um sorriso no rosto,
que logo se transformou em um olhar preocupado e um abraço:
-Minha menina! Entra, nós vamos
cuidar de você...
Bruno me ligou inúmeras vezes, foi atrás de mim na faculdade, na academia, até ficou me esperando em frente a casa dos meus pais uma vez, mas eles ameaçaram chamar a polícia. Nem sei quantas vezes ele disse que se mataria. Mandava mensagens e mensagens tentando me convencer de que ele iria mudar, que ele só tinha me batido porque eu tinha deixado ele com ciúmes, ou porque eu insistia em fazer coisas que ele não gostava, mas que ele não faria mais isso. Que ele me amava e que não estava pensando quando me machucou. Eu lia tudo, ouvia o que ele tinha para dizer e parte de mim queria muito acreditar, mas eu estava determinada a não mais acreditar em um amor que eu queria que fosse verdade, mas não era. E o dia em que eu resolvi não atender mais as ligações dele, ou ler suas mensagens, foi o dia em que escrevi publicamente este desabafo:
Você diz que me ama, mas que ama demais.
Eu sou delicada, doce, porém impulsiva.
Sou cabeça fraca, me influencio sem perceber
E só por isso você não me divide com ninguém
Você diz que me admira, mas o tempo todo me critica.
Me faz desistir de projetos, não me incentiva.
Diz que que quer me proteger.
Você faz isso para o meu bem.
Ou
é coisa da minha cabeça explosiva.
Diz
que ninguém vai me amar como você,
Jamais
encontrarei outro alguém
Para que comemorar aniversário?
Ir à minha formatura, para quê?
Tudo isso é uma grande besteira,
Se eu puder estar ao lado do meu bem.
Quem
ama não anula,
Não
humilha, não descrê.
Quem
ama não macula,
Não
ofende o bem querer.
Quem
ama escuta,
Voa
e deixa voar.
Quem
ama não chuta,
Não
bate, não faz sangrar.
Amor
não é para doer.
Amor
é para doar.
Amor
não desfigura
Nem
corpo, nem coração.
Quem
ama estende a mão,
Tira
o outro do chão,
Perdoa
e pede perdão.
Isso
que você faz não é amor.
Isso
não é nem paixão.
Isso
é chantagem, covardia, rancor,
É
ser para o outro destruição.
Cada
pedaço que você triturou
Quer
vomitar na sua direção.
Desintoxicar
de todo esse horror
Regenerar-se
em autocompaixão.
Eu
me amo, apesar de você.
Uau! Reflexivo, profundo, realidade triste que sabemos que existe e precisa ser denunciada. Continue prima, amada! Não deixe de escrever.
ResponderExcluir"Cada pedaço que vc triturou quer vomitar em sua direção..."
ResponderExcluirComo a poesia pode ser marcante e dizer tudo em tão poucas palavras!
Obrigada!
Quero mais!!!
Pesado na medida certa. Adorei. Aguardando o próximo capítulo!
ResponderExcluirTexto intenso,bem elaborado. Uma bela história. Que todos devemos tirar lições. Destaco: Devemos nos amar
ResponderExcluirUm excelente texto que exemplifica muito bem o que é um relacionamento abusivo, normalmente tudo começa com mil pétalas de rosa e depois termina com mil espinhos. Que mais mulheres e homens não se permitam a ser tratados como ela foi... e consigam gritar "Chegaaaaaa"
ResponderExcluirTriste realidade e que vc abordou com muita sensibilidade! Achei incrível o fato de você ter colocado exatamente como acontece na maioria das vezes, aos poucos a pessoa vai piorando e piorando no relacionamento abusivo.. a gente tem q se manter sempre alerta, saber do nosso valor, o que não devemos aceitar de jeito nenhum e principalmente ouvir nossos amigos de verdade e familiares q querem nosso bem quando estiverem falando sobre nossos relacionamentos (e que tenham razao). Tema importantissimo! Obrigada pela sua escrita miga!!!
ResponderExcluirQue história, que escolha de palavras, nem imagino o que é viver isso, mas sua sensibilidade me fez entrar na história com intensidade. Que Deus abençoe seu dom e sua empatia, de colocar em palavras, tão bem escritas, a dor do outro!
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