Aqui embaixo - Capítulo 3 - O verdadeiro amor

em sábado, 27 de março de 2021

A placa na porta dizia: "Em atendimento", então me sentei na cadeira acolchoada da sala de espera. Ainda bem que não tinha ninguém ali para constatar a inquietação de minhas pernas. Olhei o relógio, faltavam poucos minutos para ouvir alguém chamar meu nome. Alguém cujo rosto eu não conhecia, mas que - eu imaginava - ia querer saber tudo de mim. Eu tentava ensaiar respostas para uma avalanche de possíveis perguntas, quando fui interrompida por uma voz feminina grave e levemente rouca:


- Você é a Beatriz? Vamos entrar!?


No fundo, reparei uma rosa sobre a bancada, e, mais acima, uma palavra desenhada na parede: “Respire!”. Olhei para aquilo que poderia ser uma ordem, ou um pedido, mas que, particularmente em mim, soou como um convite. Inspirei com atenção, percebendo o oxigênio inflar meus pulmões, enchendo-me de vida. Enfim, levantei os olhos. A mulher à minha frente fitava-me com uma expressão atenciosa. Em silêncio, ela parecia esperar que eu pudesse me recompor. De alguma forma, ela demonstrava notar que eu passava por muita coisa.

 

- Oi, Beatriz – disse ela, enfim. - Meu nome é Susana. Você quer me contar o que te trouxe aqui? Fica à vontade para dizer o que quiser...

 

Eu não estava preparada para uma pergunta tão vaga. Tinha respostas planejadas para questionamentos sobre a minha família, meu trabalho, minha infância, sobre os meus hobbies e medos, mas eu não tinha resposta pronta para aquela pergunta. Então fui simplesmente sincera:

 

- Uma das minhas melhores amigas, a Lara, faz terapia já há uns dois anos e ela disse que me faria bem.

 

Foi assim que eu comecei um processo sério, doloroso, sufocante e extremamente necessário de terapia. Saí daquela sessão com o rosto vermelho e inchado, sem entender como, com tamanha facilidade, consegui falar tanto sobre o meu relacionamento com o Bruno. Talvez aquela figura feminina, justamente por ser feminina, tenha me deixado confortável. Ou talvez tenha sido o fato de ela não ser alguém da família, ou minha amiga, o que me permitia esvaziar sem medo de julgamentos e sem necessidade de manter qualquer imagem de algo que eu já tivesse sido. Na verdade, nem eu sabia mais quem eu era. Me via como uma figura disforme, embaçada e fluida, que poderia ser facilmente transformada em qualquer coisa ou em nada.

 

Cada sessão parecia cutucar uma ferida que eu imaginava fechada, como se em cada uma delas, eu arrancasse uma casca mal curada, mal fechada, infeccionada. E como doía! Apesar de todo o trabalho que vinha sendo feito, já fazia dois anos que eu não tinha qualquer relacionamento. Nesse processo de autocuidado, eu não tinha conseguido ainda abrir espaço para outro homem. Eu tinha medo de que alguém pudesse destruir o que eu vinha, com tanto esforço, reconstruindo. Tinha medo de ser novamente frágil. Foi isso o que o Bruno fez comigo.


Em meio a essa busca, eu encontrei algo que eu nem sabia que me faltava: espiritualidade. Não é que eu não acreditasse em Deus, ou nunca tivesse rezado, mas nos últimos anos, a minha relação com Ele era basicamente feita de pedidos e choros. Eu dificilmente conseguia estabelecer diálogo e intimidade. Foi na procura por autoconhecimento que entendi minha necessidade de encontrar sentido de viver, algo que fosse além das minhas ambições profissionais ou prazeres passageiros. Encontrei nos relatos das vidas de cristãos – dessa e de outras gerações – algo que me perturbava e encantava. Por que alguém se dedicava a um Deus invisível, com convicção de sua existência, vivia por Ele e, se preciso, morria por Ele? Fui me envolvendo nessa experiência. Me deixei moldar e fui sendo curada por Deus. E foi só por isso que o Leandro me chamou a atenção.


Uma vez, eu saí com os amigos da Lara e reparei que o Leandro carregava um crucifixo no pescoço. Conseguia ouvir partes da conversa que ele tinha com outro amigo nosso. Leandro falava sobre o intercâmbio, do qual tinha acabado de retornar, e seus olhos brilhavam enquanto ele contava sobre os lugares que havia visitado e as praias em que tinha surfado. Como o papo dele era interessante! Vi naquele cara algo que eu não via em outros homens. Parecia muito seguro e ao mesmo tempo muito disposto a ouvir. Quando acabei entrando na conversa, mesmo que meus conhecimentos geográficos fossem tão limitados, ele escutava com muita generosidade as bobagens que eu tinha a dizer. Eu queria conversar com ele por horas e horas, queria que ele fosse meu amigo.


Começamos a ter mais convívio e pudemos falar sobre fé, caridade, gentileza... um estilo de vida diferente e aquilo me transformou. A ponto de um dia, em uma caminhada noturna pela praia, eu me sentir segura o suficiente para falar com ele, um homem, sobre o último relacionamento que eu tive e sobre o fato de que há dois anos eu sequer beijara na boca. De todas as posturas que eu já tinha visto em um homem, aquela eu não esperava nem mesmo dele. Lançou sobre mim um olhar preocupado, perguntou se eu me sentiria incomodada se ele me abraçasse e, ao ouvir minha resposta, embalou-me com firmeza por tanto tempo e com tanto aconchego que eu nem sei por quantos minutos ficamos ali. Minhas lágrimas escorriam pelos seus ombros, selando o que seria o meu último choro pelo Bruno.


Não foi rápido que nós declaramos o que estávamos sentindo. Não foi uma paixão arrebatadora. Não foi o meu primeiro amor. Mas foi uma relação construída de muito afeto, intimidade, generosidade, admiração e respeito. Em seis meses, já nos sentíamos completamente à vontade para sermos nós mesmos, o que, no meu caso, era uma grande descoberta. Vivíamos colados, íamos para a igreja juntos, íamos para o bar juntos. Dançávamos juntos, chorávamos juntos. E ele não precisava dizer nenhuma palavra para que eu entendesse que ele me esperava. Esperava o meu processo de cura, de purgar, drenar aquele veneno que por tanto tempo me percorrera. E quando eu me vi limpa, pronta, autoconfiante e disposta a me entregar de novo a uma outra pessoa, eu sabia que era para ele que eu me entregaria.


Foi numa quinta-feira cinzenta que eu chamei o Leandro para assistir um filme na minha casa. Ele chegou super acelerado, contando sobre um estresse do trabalho, o que fez com que ele demorasse um pouco a perceber a música no fundo e o ambiente um pouco mais convidativo que o normal. Só quando ele se sentou ao meu lado no sofá e sentiu o cheiro do meu perfume, ele levantou os olhos e pareceu, enfim, enxergar. 


Afastei uma mexa rebelde de seu cabelo que caía sobre uma das sobrancelhas. Deixei que meus dedos deslizassem suavemente pelo seu rosto. Me aproximei até que nossas pernas se entrelaçassem e então eu senti cada palavra saindo aos pouquinhos, voando de dentro de mim:


- Você me ajudou a colar cada pedacinho meu e agora eu não quero viver uma vida em que eu não seja a sua mulher, a sua companheira. E eu quero que você sinta cada dia da sua vida o quanto eu te amo e que você nunca se arrependa de ter me esperado. Eu vejo e eu vi tudo o que você fez por mim e por nós e estou aberta a me deixar transbordar junto com você nessa vida.

 

Demos o beijo mais esperado da minha vida e o melhor de todos, que me arrepiou do dedinho do pé ao coro cabeludo. Adrenalina, paixão, tesão, amor, alívio... não sei nomear. Todo o meu corpo estava em êxtase. Mais ainda a minha alma.


A partir daquele momento, desfrutamos de uma vida de muitos aprendizados e respeito e eu me sentia valorizada. Ele nunca precisou me diminuir para crescer. Pelo contrário, sempre aplaudia os meus avanços, o crescimento da minha loja, as escolhas profissionais e intelectuais que eu fazia. Conhecemos mais de vinte países juntos, compramos uma casa, casamo-nos, passamos pelas dificuldades de um casal recente... E tudo era de um companheirismo indescritível, desde limpar o banheiro juntos até decidir pegar um avião de uma hora para a outra.


Por isso, quando ele demorou a chegar em casa depois de uma manhã de surf, eu gelei. Algo me dizia que uma dor muito grande iria me acometer. Não era normal toda aquela demora sem aviso.  Recebi então a pior ligação da minha vida. O meu grande amor, meu melhor amigo, parceiro de vida...


Hoje é possível falar disso, não sem dor, não sem saudade, mas é possível. Aqui do alto dessa montanha, eu me preparo para lançar ao mar as cinzas do meu grande amor. Foi nesse mar que ele tantas vezes se encontrou, foi nele que ele morreu e é com esse gesto que eu quero decretar: eu sou o seu legado! Uma mulher antes destruída por um homem, hoje refeita com a ajuda de um.


Existem muitas maneiras de ser homem, muitas maneiras de ser mulher e muitas maneiras de ser humano, mas todas aquelas que nos violam ou violam o outro não merecem a nossa insistência e existência. Também o amor tem muitas formas e objetos – outra coisa que Leandro me ensinou. Amo o outro, amo a mim e amo a Deus, e se esses amores violam um ao outro, então estamos amando errado.

9 comentários:

  1. “Foi assim que eu comecei um processo sério, doloroso, sufocante e extremamente necessário de terapia.“ descreveu exatamente.. beem isso!! Tive que me emocionar no final da história.. que possamos sempre refletir se nossos relacionamentos estão violando aos amores que precisam co-existir. Obrigada por como minha amiga, reforçar sempre minha fé em Deus!

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  2. Nem sempre sabemos amar certo...
    Obrigada por me fazer refletir sobre isso...

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  3. Me identifiquei tanto com a Beatriz que nem sei explicar. Adorei o texto. Infinitamente profundo.

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  4. Minha bonequinha de porcelana!
    Você é um ser de luz!!

    Ser grato a Deus é entender que a vida é um dom divino, que somos afortunados por ter família, saúde, abrigo, alimento. Ser grato a Deus é aceitar as bênçãos e também os obstáculos com o coração aberto, sabendo que o tempo de Deus nem sempre é o nosso tempo. Ser grato a Deus é ter a certeza de que Ele está cuidando de nós e fazendo sempre o melhor...

    "Que tudo aquilo que tocar o nosso coração possa encher nossa vida de paz, nossa alma de alegria e nosso caminho de luz"....🌿🤍

    Que a noite lhe traga a paz a serenidade o descanso
    e o respirar tranquilo que você merece.
    Que os anjos te guardem.
    Que o espírito santo de Deus vivo te abençoe, fortaleça ,te de sabedoria.
    Que amanhã seu recomeço seja cheio de proteção, energia,
    boas escolhas e paz para seguir.
    BOA NOITE⭐️🙌🙏🌹🥰😘

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  5. Sempre quis fazer terapia, mas nunca foi uma prioridade, mais uma vez serei influenciada por Beatriz 😍
    O final foi muito triste e emocionante, parabéns pelo texto 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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  6. Incrível amiga! Parabéns pelo seu dom e talento, tenho muito orgulho de você! Muito boa a evolução da Beatriz, o amadurecimento dela, o aprendizado com as dores e alegrias! Foi emocionante acompanhar essa caminhada e ficou um gostinho de quero mais! ☺️ Obrigada por compartilhar seus dons! 👏🏽🙏🏽

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  7. Ownnn prima, que emocionante essa trilogia. Que emocionante é ver você crescendo com as suas histórias e sempre ensinando algo importante. Parabéns prima! Ansiosa por ler seu livro. Voa!

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  8. Muito bom, amiga! Acho que a Beatriz merece uma continuação pra ter um final feliz. Continue escrevendo, sou sua fã! Saudades

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