Phronesis - Parte 3

em sábado, 22 de agosto de 2020

 Um belo dia de sol podia ser visto da varanda da casa Phronesis. Os retirantes já pareciam mais à vontade em andar pelos corredores do local. Aparentemente, todos aqueles dias passados ali haviam trazido uma sensação de familiaridade com o ambiente e até com as pessoas, mesmo que elas não trocassem muitas palavras e não conhecessem as histórias umas das outras. Cauã já havia traçado um perfil para praticamente todos os participantes, apenas pela maneira como se comportavam ou se vestiam. Reparou, inclusive, que o rapaz que parecia ser o mais novo entre os que viviam o isolamento não aparecera mais desde a dinâmica da pintura. Parecera disperso durante a atividade, ou talvez incomodado.


- Hoje eu vou contar para vocês – começava Isaías - sobre a vida do homem que inspira esse curso, homem cujas ideias perpassam por tudo o que estamos experimentando ao longo destes dias. Viktor Emil Frankl foi um médico e psiquiatra austríaco que se tornou mundialmente conhecido após os relatos de sua experiência pelos quatro campos de concentração por onde passou como prisioneiro do nazismo. Em seu livro “Em busca de sentido”, ele descreve como pôde aplicar e testar, em si mesmo e até em alguns poucos companheiros de prisão, o método psicológico que já vinha desenvolvendo antes de se tornar um prisioneiro. Esse método é a Logoterapia, que tem por base a esperança e o sentido de vida. O ensaio psicológico relatado é de uma riqueza impressionante e precisaríamos de muitos dias para explorá-lo a fundo. Mas eu queria destacar algumas coisas para vocês.


O reitor juntou-se aos retirantes, sentando-se em uma das almofadas espalhadas pela varanda, fechando, desta maneira, o círculo que se formava.


- Frankl conta que, logo na chegada ao campo de concentração, os prisioneiros já eram destituídos de tudo: roupas, pertences pessoais e até mesmo de sua dignidade. A única coisa que lhes restava era o próprio corpo sem pelos, e mesmo assim, por pouco tempo. Logo perceberiam que até os seus corpos estavam submetidos ao domínio de outros. Os prisioneiros sofriam torturas, humilhações, doenças e noites sem dormir, que aos poucos iam criando um estado emocional e psicológico de muita fragilidade. Passavam a ter um único objetivo: sobreviver. Entretanto, Viktor começou a perceber que, ao longo do tempo, muitos desistiam de lutar e se entregavam à apatia ou mesmo ao suicídio. Foi aí que ele fez um pacto consigo mesmo: prometeu que nunca se jogaria contra a cerca elétrica e, no que dependesse dele, lutaria com todas as forças pela vida. Seguindo então com firmeza o seu propósito de se manter vivo, o psiquiatra observa que o psiquismo dos prisioneiros acaba entrando numa espécie de mecanismo de autodefesa, de forma que quase nada os sensibiliza e o lado mais animal e instintivo do ser humano acaba se destacando. Conseguem pensar em alguma possível situação que retrate isso dentro de um campo de concentração?


Isaías esperou que alguém se manifestasse, mas nenhum dos retirantes pareceu dar sinais de ter respostas a essa pergunta.


- Difícil imaginar, né? De fato, por mais que muito já se tenha falado ao longo da história sobre a realidade nazista, é realmente difícil assimilar o que pode ter acontecido naqueles campos de concentração. Pois bem, Frankl percebe que muitos dos que estavam ali presos passam a ter comportamentos questionáveis, como roubar algo de outro prisioneiro, buscar ser mais esperto na hora de receber a sopa para a alimentação, comemorar por outro ter sido escolhido para a morte na câmera de gás... É claro que é compreensível que ninguém quisesse ser escolhido, mas chama a atenção a insensibilidade à morte do outro. O psiquiatra nota que ao mesmo tempo em que alguns prisioneiros escravizavam e maltratavam seus próprios conterrâneos, havia dentre os soldados aqueles que eram menos duros e que tentavam de alguma forma ajudar. É a partir daí que Frankl conclui que o caráter e a força de vida que havia dentro de alguns davam-lhes condições de responder de forma diferente mesmo em meio a tantos sofrimentos e facilidade de exercer algum poder. Está aí o que realmente não pode ser retirado de um homem: a sua liberdade interior, o seu poder de escolha.


- Isso lembra o que foi falado na primeira aula: “a melhor forma de viver é aquela que é possível” - apontou um dos retirantes.


- Sim, exatamente! Nesse sentido, Viktor ainda se aprofunda um pouco mais, descrevendo a base da sua ciência desta forma: sempre há motivo para viver e a vida sempre vale a pena em qualquer circunstância. Conclui isso ao perceber que a esperança era o fio condutor que possibilitava o desejo de viver, pois aqueles que tinham um motivo do outro lado dos muros dos campos de concentração, como um amor, um projeto ou uma pessoa que esperava, já encontrava motivo suficiente para se manter vivo. E então eu convido vocês a novas reflexões... Durante este retiro, vocês se depararam com muitos sentimentos, certo? Muitos estiveram conversando com os psicólogos da casa, falando sobre recordações dolorosas que acabaram revisitando, ou sobre percepções de insatisfações presentes... tudo muito estimulado pelos pensamentos filosóficos que foram apresentados, por aquilo que a arte nos permite acessar e pelos questionamentos que fizemos. Diante de tudo o que vocês sentiram e viveram, e pensando no que diz Viktor Frankl sobre a vida sempre ter sentido independente das circunstâncias, eu pergunto: Será que as dores, os sofrimentos, as frustrações, que fazem parte da vida, não devem também ter sentido? Se sim, que sentido elas têm hoje para você? Será que é possível e, quem sabe, necessário, ressignificá-las?


Estimulado pelas perguntas do reitor, Cauã se viu retomando a cena de meses atrás. Podia reviver com exatidão aquela latente sensação de confusão e impotência.


-  Ó, meu Deus – exclamou a enfermeira. – Alguém chame o Dr. Carlos, por favor.


Cauã observava a roupa que vestia, aquela camisola que vira em tantos filmes, mas que não se lembrava de alguma vez já ter usado. Ouvia o barulho dos aparelhos ao seu lado, sons que lhe geravam mal estar. Observou o tubo que lhe saía do braço esquerdo, quase ao mesmo tempo em que se deu conta da secura de sua boca.


- O que está acontecendo? – perguntou o rapaz.


- Sr. Cauã, acalme-se, o senhor está em um hospital e o Doutor Carlos, que tem cuidado de você, está a caminho para lhe explicar tudo, está bem?


Entretanto, calma era algo que o rapaz não tinha naquele momento. Sentia seus reflexos extremamente lentos, olhos que mal se abriam e uma visão embaçada. Virou o pescoço em busca de alguma imagem que pudesse lhe ajudar a entender o que se passava. Viu a enfermeira anotar algo no prontuário em suas mãos. Se esforçou para tentar decifrar que palavras aqueles riscos sobre o papel poderiam estar formando, mas os dedos eram extremamente ágeis. O rapaz ainda constatou que a enfermeira era canhota, observando a aliança em seu anelar acompanhando os movimentos frenéticos daquelas anotações. A visão do anel pareceu lhe conduzir novamente ao lugar de suas últimas lembranças.


- Essa não, essa não! Que dia é hoje? – Perguntou o jovem se sentando na cama, com uma velocidade que lhe fez doer a coluna.


- É melhor esperarmos o Dr. Carlos chegar. Ele já está a caminho e... – a enfermeira foi interrompida pelo grito assustado do rapaz, que mirava um quadro branco no corredor.


- 15 DE DEZEMBRO DE 2020? – os olhos esbugalhados. – Não é possível... Isso é alguma pegadinha? Porque é de muito mal gosto. O que diabos está acontecendo?


Cauã tentava se concentrar no que o médico dizia, mas estava realmente difícil assimilar aquilo tudo. O acidente, o traumatismo craniano, o coma de quase um ano... Só queria ver Carla e sua família.


- Eles estão a caminho, Cauã. Em poucos minutos estarão aqui – acalmava-o a enfermeira.


Enquanto aguardava, reparava uma certa apreensão entre médico e enfermeira, como se houvesse algo que não estivessem lhe contando. Será que ele tinha ficado com alguma sequela? Sabia que todos os seus sentidos estavam ótimos e, apesar de ainda não ter se levantado, já havia movimentado pernas e braços. Começou a pensar se havia acontecido algo a algum de seus familiares. Tentou controlar a sua ansiedade, afinal aquilo não era nem de seu feitio. Não costumava ser tão acelerado assim, mas há de se convir que a situação era extremamente angustiante.


Longos minutos se passaram até que ele avistasse o primeiro rosto familiar. Sua mãe se aproximava com os olhos vermelhos. As lágrimas encharcavam a máscara que lhe cobria o nariz e a boca. Em seguida, brotava a figura robusta do pai, que também parecia emocionado, mas era difícil dizer por conta da máscara. Em meio à confusão toda, Cauã não teve tempo de questionar o porquê de tudo aquilo. Quando sua mãe viera lhe abraçar, foi repreendida pela enfermeira que pediu para conversarem lá fora. O pai, por sua vez, se manteve à entrada do quarto, olhando para o filho com uma expressão que demonstrava alegria, mas também uma certa piedade.


Cauã precisou de muitos dias para assimilar tudo o que havia acontecido. Não bastasse a história do acidente, um dia antes de seu casamento, ele ainda precisaria lidar com um mundo completamente diferente do que havia conhecido antes do coma. Um mundo doente, de portas fechadas por medo de um vírus altamente contagioso e vez ou outra fatal.

__________

No último dia do 3º Retiro de Isolamento Social da Casa Phronesis, os participantes puderam enfim contar suas histórias e os motivos que os levaram até ali. Todos ficaram realmente impactados com a fala de Cauã. Ele podia notar as expressões de solidariedade quando falava sobre a sensação de sair do hospital usando uma máscara e ver tantos cartazes pela rua estimulando as pessoas a ficarem em casa. Contava sobre o quanto sua mãe chorava quando pôde enfim lhe abraçar, após ter um resultado negativo no exame de COVID-19 e sobre a sua surpresa ao notar o tanto de pessoas que ele via em suas redes sociais iniciando novos projetos ou expondo lados que ele ainda não conhecia. O advogado falou sobre o quanto tudo aquilo lhe era perturbador e como sentia que a única pessoa que ainda buscava viver conforme seus planejamentos era ele mesmo. Até a sua noiva, que era sempre tão parceira e carinhosa, parecia estar diferente. Ele não conseguia entender que ela que - não fosse o acidente - estaria casada com ele, estivesse disposta a ir para outro país fazer um curso para investir na profissão de escritora. Parecia que ele namorava outra pessoa, uma sonhadora sem os pés no chão. Explicou que sempre reconhecera o quanto ela era boa na escrita, mas daí a largar tudo e adiar mais ainda o casamento deles... Já era demais.


Após a roda de conversa e mais algumas falas do reitor, os participantes foram então liberados. Cauã foi tomado por uma sensação nostálgica ao observar aquela casa que lhe serviu de lar por quinze dias. Um lar de muitas transformações que ele não poderia prever. Entrou no carro com um destino em mente.


- Oi! – Carla abriu a porta com um olhar carinhoso e uma postura contida – Não sabia que viria tão cedo.


Deram um selinho e Cauã a abraçou por bastante tempo, o que fez a moça baixar a guarda.


- Eu queria te mostrar uma coisa. Espero que não se assuste... – disse o rapaz entregando à noiva o papel que trazia dobrado no bolso:


Quando menino, eu era Capitão.

Na juventude, cheio de opinião.

Agora adulto, cubro o rosto,

não quero exposição.

 

Eu quero proteção.

Sou feito de discrição.

Não sonho, não arrisco,

gente séria faz isso não.

 

Eu vi máscaras penduradas.

Dor, horror, indignação.

Em meio ao grito de tantas vozes,

falava mais alto a da negação.

 

Precisei de tempo para entender

que as máscaras eram transformação

e agora digo que, da minha vida,

sou novamente o Capitão.

 

- Você escreveu isso?


- Sim, na verdade é para ser uma música, mas ainda não consegui evoluir muito nessa parte. – Cauã se sentia comovido com os olhos marejados da mulher que amava – Eu entendo agora, meu amor. Faça o que precisa fazer. Quer dizer, eu sei que você faria de qualquer forma, mas eu estou contigo nessa. A gente dá um jeito...


Carla saltou num abraço apertado, envolvendo o quadril do rapaz com suas pernas.


- O que te fez mudar de ideia? – perguntava a moça ainda em seu colo.


- Aprendi com umas pessoas que quem tem um “porquê”, suporta qualquer “como”.

2 comentários:

  1. Adorei o texto e fiquei super interessada em saber mais sobre esse retiro Phronesis. Engraçado que por muitas vezes a gente se coloca como Cauã e não entende o porque do outro agir ou escolher viver de certa maneira, mas o que verdadeiramente importa é que independente da escolha ou decisão do outro, todos somos livres... ansiosa para ler mais sobre esse assunto!!!

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  2. O sentido da vida é que devemos sempre ter. Boa história.

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