3h22 - Texto da série "Com amor, para você - Escritos para amigos"

em sábado, 31 de outubro de 2020

 3h22. É a quarta vez que ela acorda com aquele choro agudo e faminto. “Essa é uma daquelas noites”, pensa ela.  Olha para a cria se remexendo de um lado e a figura sonolenta do marido do outro, tentando demonstrar alguma solidariedade, mas voltando a dormir por saber que não há muito o que fazer. Uma fábrica de leite, era assim que ela se via. Estava cansada e cheia de faltas. Falta colágeno, falta sono, falta autoestima, falta tempo, falta liberdade.


Graças a Deus ninguém podia ouvir os pensamentos que lhe invadiam vez ou outra. Lembrou-se do sonho que tivera há uns dias. Não recordava de todos os detalhes, mas era viva a cena de deixar uma carta sobre a mesa da sala, sair apressada e pegar o primeiro ônibus que via. Seu semblante era leve, mesmo com as olheiras. No meio de um sorriso com cabelos ao vento, ela acordou, quase decepcionada, o que era horrível, mas igualmente inevitável. 


Não é que não houvesse amor, isso ela tinha e muito. Aliás, provavelmente essa era a única coisa que a separava do sonho. Mas amar aquele serzinho indefeso e totalmente dependente não anulava tudo o que ela já havia sido até ali. Em meio a tantas fraldas e tarefas do lar, ela sentia falta de se arrumar para o trabalho, de avaliar planilhas e dar orientações. Sentia falta de ler um livro sem ter hora para acabar, ou de ir para algum lugar que não fosse uma caixa de concreto. Sentia falta de não fazer absolutamente nada. Falta de transar quando desse vontade. E falta de ter vontade de transar. 


Sentia falta de se reconhecer. 


Sim, a maternidade foi uma escolha, mas isso pouco amenizou a dificuldade das mudanças. A verdade é que ela tinha ouvido falar, mas ela não sabia. E ninguém podia saber por ela. Era tão individual que ela tinha dificuldade de explicar. Mas era real e latente. Ela estava um caos e precisava ser calmaria para outro alguém. Precisava de descanso e empatia, precisava de uma pausa para se revigorar. Mas a vida não pausa, não tem saída. E no meio disso tudo, ela não sabe, não percebe ou não se lembra do quanto é admirável, de como é forte, interessante, criativa e atraente. Mas ela é. Não acredita que as coisas vão melhorar. Mas elas vão. Não vê o quanto ela já superou e aprendeu até aqui. Mas aconteceu. 


Ela vai se encontrar, vai se equilibrar, vai, mais uma vez, se multiplicar em mil para dar conta de tudo o que ela quer e gosta de ser. Porque ela é mãe, mas não é só mãe. Ela é mulher, é empreendedora, é artista, é filha, é amiga, é jovem, é divertida, é brilhante. E é mãe. E ela vai dar um jeitinho, como sempre deu, de dar o seu o melhor em ser tudo isso. Não é questão de egoísmo, é questão de identidade.

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